quarta-feira, janeiro 31, 2018

(AV) O fetichismo de Marcel Duchamp em torno dos pelos púbicos

Ao morrer em outubro de 1968 Marcel Duchamp deixou uma obra póstuma, que mostrava uma mulher alongada, sem cabeça, com as pernas afastadas deixando ver uma vulva rapada. A obra intitulava-se «Étant données: 1º la chute d’eau; 2º le gaz d´eclairage» e fora construída em segredo entre 1946 e 1966 no atelier que o artista tinha em Nova Iorque. Respeitando-lhe a vontade, a viúva só a  deu conhecer postumamente, estando hoje exposta no Museu de Filadélfia.
Ela consta de uma porta rústica fechada hermeticamente, mas com dois pequenos buracos por onde se pode espreitar uma parede por cuja brecha se pode ver a mulher nua em causa.  Ela tem na mão esquerda uma tocha, que ilumina uma paisagem bucólica com um céu nublado e uma cascata a espraiar-se num lago brumoso.
O corpo nu oferece-se impúdico, encadeado pela lâmpada de 150 watts, que lhe foca o sexo.
Alguns críticos sublinharam as semelhanças com o quadro «A Origem do Mundo» de Courbet, que Duchamp vira em casa de Jacques Lacan em 1958. O enquadramento do sexo feminino é quase idêntico em ambas as obras. Mas com a diferença de no conhecido quadro ele se apresentar com abundantes pelos púbicos. Daí a questão de se ponderar nas razões para Duchamp optar pelo sexo rapado de pelos.
Logo houve quem recordasse o projeto de Duchamp nos anos 20 em que imaginava filmar a baronesa Elsa von Freytag-Loringhoven a depilar o púbis. Segundo Yiannis Toumazis “os pelos púbicos femininos mereceram particular atenção por parte dos dadaístas e dos surrealistas”.
O próprio Duchamp cultivara um fetichismo peculiar confessado pela sua primeira esposa, Lydie Sarazin-Levassor: “ ele tinha um autêntico horror pelo mínimo pelo” considerando que ele determinava que o homem não fosse senão um animal um pouco mais evoluído.
Esse horror levava-o a depilar cuidadosamente o corpo, tudo fazendo para eliminar o mínimo pelo. Pouco terá faltado para que rapasse a cabeça, condescendo dificilmente a manter aí a sua cabeleira .
Quando conheceu Lydie, Duchamp convenceu-a a deixar-se submeter a uma depilação total, que constituiu uma sessão memorável, porque utilizou um creme de cheiro tão intenso, que só se começou a diluir ao fim de quarenta e oito horas.
Será que esse fetiche contribui para melhor lhe explicar a obra? As interpretações são variadas e uma delas enquadra esse ódio de Duchamp aos pelos no contexto de uma profunda hostilidade à bestialidade, que ele faz coincidir com o materialismo. Contra a obsessão pelos bens materiais, Duchamp procurava enfatizar a relevância do espiritualismo, que se tornara fora de moda depois de 1860.
Daí considerar que, a partir de Courbet todos os artistas se tinham tornado numas bestas, que deveriam ter sido internados em nome da hipertrofia do ego de que seriam sofredores.
Depois dessa data “cada artista arvorou-se do direito de ser mais livre do que os que o tinham precedido: os pontilhistas mais livres do que os impressionistas, os cubistas ainda mais, e os futuristas, e os dadaístas e por aí adiante. Mais livre, mais livre, mais livre - chamam a isso liberdade. Os bêbedos são postos nas prisões. Porque é que o ego dos artistas deveria ser autorizado a empestar a atmosfera? Não sentem essa podridão?”
Para Duchamp, Courbet inaugura essa era de falsa liberdade, que consiste em assinar obras provocadoras baseadas na transgressão dos tabus.
Num ensaio intitulado «Marcel Duchamp por si próprio (ou quase)», Alain Boton explica que o pelo representa o olhar retiniano no que pode ter de mais trivial e libidinoso. Daí o bigode que Duchamp aplica à Gioconda, acompanhada na frase “ela tem fogo no cu” (LOOOQ). Aquilo em que se acrescentam pelos torna-se vulgar, lúbrico, até mesmo venal. No sexo feminino os pelos evocam forçosamente algo que deve ser possuído. Daí que um sexo rapado escape às tentativas de apropriação, tornando-se no símbolo de algo que falta. A mulher representada nesta obra transforma-se assim numa caixa de fantasmas: pode-se espreita-la através dos buracos, mas não é passível de ser tocada, possuída. Perde o valor de objeto sexual. Segundo Bergson “a arte visa afastar os símbolos utilitários: as generalidades convencionalmente e socialmente aceites, ou seja tudo o que mascara a realidade para nos confrontar com a sua verdadeira face”.
Resta saber quem era essa mulher cujo corpo sempre nos escapará... 

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