segunda-feira, janeiro 15, 2018

(DL) «L’ heure hybride» de Kettly Mars (2005)

Em 2005 a escritora haitiana Kettly Mars publicou o seu segundo romance, que adotava como protagonista um gigolo de Port-au-Prince, chegado a uma altura da vida em que se justificam os balanços sobre as suas origens e o que fez para se tornar no que é.
Para além do contexto de um país marcado pela ditadura dos Duvalier durante décadas, enfatiza-se uma hierarquia social em função da cor da pele. Jean-François vive na situação ambivalente de, nem sendo muito negro, nem apresentando uma tez suficientemente branca, situar-se entre dois mundos, que o olham com suspeição e o fazem sentir-se perdido.
Vivendo sobretudo de noite, já que os dias lhe servem para se alongar na cama a descansar e a ouvir as notícias transmitidas pela rádio, ele inventa para as clientes mil vidas bem mais excitantes que a sua. Nessa versão de Rico, o homem que prodigaliza prazer, é nítida a existência desse estado de hibridez: “Existo na noite. Num espaço onde as fronteiras ficam fluidas, na penumbra que atenua os defeitos, maquilha as imperfeições, dissimula o que perturba.”
De dia sente vir a si, idealizada de forma quase obsessiva, o fantasma de Irene, a mãe desaparecida demasiado cedo, que foi também a única mulher a quem verdadeiramente amou. Também ela prostituta, é por ele santificada, tanto mais que, oriunda de uma família prestigiada, se viu tão vítima das circunstâncias quanto ele se sente nesta altura. Mas Rico não enjeita o recurso à ambiguidade dessa origem para ir sobrevivendo. Até que um inesperado encontro irá afetar todas as suas convicções, virar de pantanas tudo quanto julgara compreender até então. Port-au-Prince torna-se, então, e ainda mais, nesse espaço de gente perdida nas brumas do álcool e da solidão.

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