quarta-feira, janeiro 03, 2018

(DL) Os tabus nas modas literárias

No que ao sexo diz respeito vivemos tempos paradoxais: por um lado, depois da execração coletiva da pedofilia, que torna um romance como «Lolita» de Nabokov passível de integrar um índex escandalizado, senão mesmo o ignitor de um auto-de-fé extensível a muitos outros livros, filmes e obras artísticas (ai os quadros de Balthus!), e após semanas de confissões ultrajadas quanto aos assédios de crápulas colocados em situação de exigirem favores inaceitáveis se não se vissem numa situação de poder, existe uma tendência para que a relação entre duas pessoas adultas passe por um contrato prévio e escrito em que as duas partes reconheçam com a assinatura os limites a que acedem entregar-se ao outro.
O curioso é surgir, como contraponto, um tipo de obra, logo transformada em fenómeno da moda, em que todos esses limites parecem superados e onde os leitores ou espectadores exorcizem os fantasmas eróticos em inconfessáveis tabus. O sadomasoquismo de «As Cinquenta Sombras de Grey» são disso exemplo: não se escutaram reações indignadas das feministas a respeito da forma como um abusador transforma a vítima num objeto sexual sem qualquer respeito pelo seu corpo ou personalidade. O estranho foi saber que muitas mulheres compraram, leram e adoraram algo que deveria merecer-lhes justificado repúdio.
Vem isto a propósito de a «Magazine Littéraire» de dezembro trazer para tema de capa o incesto, logo abordado nas suas páginas iniciais. Em causa a publicação em França de vários romances em que o tema é esse, a começar por uma obra anónima vinda dos Estados Unidos, mas reconhecidamente bem escrita, em que uma miúda de quatro anos é continuamente violada pelo pai e, no meio de tanto terror, lhe acontece viver momentos de prazer. «Jours d’inceste» tem condições para repetir o êxito de «As Cinquanta Sombras de Grey»? Ainda não se sabe, mas o tema repete-se com o mais recente romance de Christine Angot, que tem repetidamente contado a sua própria experiência de abusada pelo progenitor. Há também outro relato confessional, o de Eve Ionesco, cuja história conhecêramos num filme com Isabelle Huppert, em que uma miúda era oferecida pela própria mãe aos fotógrafos seus amantes como corolário da sua própria experiência de abusada pelo pai. E surge, igualmente, a segunda parte (inacabada) de «O Homem Sem Qualidades» de Robert Musil em que o autor austríaco se alonga nos amores entre dois irmãos sem que lhes surja ponta do complexo de culpa de Carlos da Maia e de Maria Eduarda.
A literatura (e também o cinema) tende, pois, a servir de catarse para uma sociedade já muito distante da Revolução Sexual dos anos sessenta quando todos os tabus pareciam votados ao esquecimento. Estabelecendo fronteiras rígidas quanto ao permitido e ao proibido, fomentam-se tabus explorados até às suas dimensões mais escabrosas, logo promovidos a mercadorias avidamente consumidas por compradores, que não imaginaríamos existirem em tão grande número.
Convenhamos que, nesta altura, não se pode imaginar para que direção evoluem os valores e os costumes da nossa civilização ocidental: por um lado parecem prevalecer os mais conforme com os da velha idiossincrasia judaico-cristã, mas por outro surgem sinais evidentes deles estarem longe de bastarem a quem os sente como demasiado restritivos aos anseios relativamente ao prazer. 

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