quarta-feira, janeiro 10, 2018

As Partes do Todo (II): 10 de janeiro de 2018: maniqueísmos irritantes

Porque está longe do meu pensamento a possibilidade do Capitalismo ser sinónimo de Fim da História - como o considerou um precipitado Francis Fukuyama! -, irritam-me sempre as abordagens maniqueístas, que dão os comunistas soviéticos como execráveis facínoras.  Sobretudo, quando em contraponto, nos mostram norte-americanos cheios de qualidades, desde a bravura aos bons sentimentos. Daí a irritação sentida perante «Guernica», um filme de 2015 assinado pelo basco Koldo Serra, que julguei vir a ser focalizado no atroz bombardeamento da cidade mártir vertida em quadro por Pablo Picasso, mas pretende ser muito mais do que isso.
É verdade que essa realidade está no filme, mas, colateralmente, somos obrigados a aguentar uma inconcebível história amorosa entre um jornalista nova-iorquino e uma republicana, sujeitos aos ciúmes de um russo cobarde e à fúria assassina de um polícia estalinista. É assim que, às tantas, já não sabemos quem são piores: se os nazis da Legião Condor preparados para, a mando de Franco, reduzirem a cidade a cinzas, se esses brigadistas soviéticos, que transformam Bilbau numa espécie de colónia dos piores estereótipos do estalinismo, tal qual descritos por anticomunistas primários.
Se já julgava ter visto ontem o pior filme deste ano ainda no início - uma coisa inenarrável chamada «Misconduct», em que Al Pacino consegue ser muito mais canastrão do que alguma vez o julgáramos capaz, ao fazer de um sinistro advogado conluiado com um criminoso líder de uma sociedade farmacêutica (Anthony Hopkins igualmente no seu pior…) -já não sei qual das fitas agora apontarei para candidata ao The Golden Raspberry Award deste ano de 2018.
E, no entanto, não é complicado dar dos regimes ditos “comunistas” uma perspetiva realista e consistente. Basta ler «O Sucessor», romance de Ismail Kadaré publicado em 2003, onde se aborda, mesmo que com nomes ficcionais, o «suicídio» do então primeiro-ministro albanês Mehmet Shehu, que fora o melhor amigo de Enver Hoxha e se viu depois qualificado de traidor quando, em 1981, a paranoia do Guia o levou a livrar-se de muitos dos altos dirigentes de então.
Ao contrário do que um qualquer Koldo Serra representaria, a realidade albanesa sob a direção de Hoxha, está longe de ser cinzenta, quase fúnebre. Existem festas e desfiles com confettis e fanfarras tonitruantes como só as dos Balcãs conseguem ser, e, para além das reuniões do Partido, as personagens têm tempo para se amarem e terem prazer gratificante no usufruto do sexo.
Existem invejas entre dirigentes, que suscitam as mais tenebrosas intrigas? Claro que sim! Torna-se particularmente arriscado subir muito alto na hierarquia, porque dela se cairá mais facilmente? Também é um facto! Mas Kadaré quase transforma os jogos de poder na cúpula partidária num teatro de sombras de cujos contornos a população de Tirana se compraz a adivinhar os significados.
No fundo têm razão os que, de fora, olham para quanto se passa no interior dessa realidade: “Para compreender alguma coisa de um país mergulhado na paranoia, é preciso ser um pouco paranoico” (pág. 120). Nada, pois, que fundamente o maniqueísmo estúpido de quem nele não quer ver mais do que uma realidade a preto-e-branco! 

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