sexta-feira, janeiro 19, 2018

As Partes do Todo (X) - 19 de janeiro de 2018: Santa Camarão e Georges Simenon

1. Luís Pedro Cabral assina na última revista do «Expresso» um longo relato sobre a carreira de Santa Camarão como boxeur nos anos 20 e 30 do século passado.
Pessoalmente, e apesar do trabalho de consulta de jornais dessa época para escrever textos relativos à História da minha classe profissional, nunca de tal personalidade dera conta. Decerto terei passado por sucessivos títulos, que iam dando conta das vicissitudes dos seus combates, mas sou de uma geração, que nem atribuiu grande relevância ao boxe como desporto, nem dele conheceu outro nome que não o de Belarmino. E este por causa do filme do Fernando Lopes e por o ver pessoalmente, com alguma frequência, na paragem do autocarro em frente à secção almadense do D. João de Castro, quando para ele me dirigia como aluno.
A história do boxeur de Ovar tem, porém, o seu interesse. Primeiro, porque foi uma força da natureza com a sua descomunal altura e o corpanzil formatado pelas muitas operações de carregar e descarregar a fragata onde ganhava parco sustento. Depois, porque acaso tivesse outra sagacidade, por certo teria disputado o título mundial de pesados com os maiores pugilistas do seu tempo. Nomeadamente com Max Schmeling, o ai-jesus de Hitler, com quem chegaria a rodar um filme de grande público nos estúdios da UFA.
Sendo o box uma profissão onde se entra pobre e pobre se sai, esse foi o destino que lhe estava traçado. Morreria na casa em que nascera, longe da mulher e do filho, que cedo o deixaram para buscarem vida melhor nos Estados Unidos.
A reportagem é daquelas, que podemos imaginar como um esboço para justificável abordagem mais alongada, possuindo potencial para dimensionar-se até ter as páginas bastantes de um romance.
2. Há escritores que se forçam a nada ler de outros parceiros do ofício enquanto andam a produzir os seus projetos. Temem o efeito de contaminação do estilo alheio tornando híbrido, menos genuíno, o seu.
Um dos exemplos clássicos dessa postura foi o de Georges Simenon que passou anos a escrever um fluxo inesgotável de romances como forma de garantir o sustento. Porque o tempo lhe era escasso para cumprir os prazos contratualizados com os editores afirmava-se um anti-intelectual porque nada dizia conhecer do que se ia publicando no entretanto. Contudo, na juventude, fora um voraz leitor de Balzac e dos grandes escritores russos (Gogol, Dostoievski e Tchekov).
Só muitos anos depois, quando decidiu dar por concluído o ofício de escritor, reformando-se a tempo de viver serenamente os últimos anos, é que retomou os hábitos da leitura com a obsessiva intenção de suprir esse atraso, sempre com a ampulheta a esgotar-se no seu topo superior.

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