quarta-feira, janeiro 10, 2018

(DIM) «Fala com Ela» de Pedro Almodovar (2002)

A décima quarta longa metragem de Pedro Almodovar foi entendida como aquela que melhor exprimiu algumas das principais obsessões do realizador no respeitante às relações amorosas e à morte. Esta é, logo de início, sugerida pelo corpo de Alicia no silencio aveludado de uma cama de hospital. Predominam os brancos no cenário, que pretende impedir qualquer emoção, apelando tão só à sua visualização. Dir-se-á, aliás, do filme, que, embora o título pareça estimular as palavras, será, sobretudo, feito de olhares.
Logo neste arranque, subsequente ao do corpo esguio de Pina Bausch a interpretar o seu «Café Mueller», depreende-se uma inflexão de Almodovar em relação ao que dele nos habituáramos até «Tudo Sobre a minha Mãe», datado de 1999, já influenciado pela morte da progenitora. Não existirão aqui efeitos hiperbólicos, comportamentos histéricos, nem cenários sobrecarregados com motivos que neles nos façam distrair a atenção. Seremos, sim, convidados a deixarmo-nos envolver pela sugestão hipnótica do filme, que nos enleará no seu incrível poder de atração e de rendido fascínio.
Benigno, o enfermeiro que cuida de Alicia, irá contrariar a conformidade com o que é a norma, não se limitando a tocar e a ver o corpo que adora, mas indo fatalmente além na sua confusão de sentimentos. E é perturbadora a sua ambígua relação com Marco, a quem dá a ver a beleza do seu objeto de paixão. Mais do que uma qualquer misógina solidariedade, senão mesmo exaltação voyeurista do feminino, pode-se depreender algo de bem mais obscuro.
A serenidade com que se irá encarar um ato manifestamente predatório (a violação, que críticas feministas verberaram a Almodovar tê-la transformado em algo de aceitável, de compreensível) dever-se-á sobretudo ao olhar enganadoramente ingénuo de Benigno. Enquanto Alicia permanece inconsciente, e Benigno a dela cuidar, toda a atmosfera do filme remete para um lado onírico, como se se vivesse na mítica «Brigadoon», que Vincente Minnelli deu a conhecer a Gene Kelly, com Cyd Charisse a fazer de ser evanescente, que lhe inflamava os ardores amorosos. O problema é que, descoberto o crime, tudo volta a ser trivial, a balizar-se em padrões rigorosos quanto ao que é legitimo ou não. Mesmo se sujeitos ao encantamento de «Mazurca de Fogo» com que se conclui o filme (se «Em Carne Viva» a construção circular impunha o início e o fim do filme com dois nascimentos, aqui ele abre e fecha com peças de Pina Bausch!), já se adivinha bem mais carnal o potencial namoro de Marco e de Alicia. Mesmo que, ainda assim, essa possibilidade se adivinhe novamente pela sua troca de olhares.
Há, no entanto, outras hipóteses complementares de leitura do filme, que o tornam excitantemente rico: a tal atração homossexual, que parece guiar a empatia entre Benigno e Marco, não se concretizará afinal na paixão por procuração, que este sentirá por Alicia? E já não estava implícita essa complexa formatação da sexualidade de Marco, quando se apaixona por  Lydia, cujo corpo musculado, e a própria atividade de toureira, remetem para uma masculinidade, que o seduzem?
Nesse aspeto não deixa de ser eloquente o episódio com a serpente ( um óbvio símbolo fálico!) em casa de Lydia. Se, à partida nada a atraía para o jornalista, que a pretendia entrevistar, e em quem via o provável divulgador das suas desilusões amorosas em formatos tabloides, basta esse súbito domínio do ofídeo para que logo se lhe entregue e lhe dê a ilusão de se ver por ele protegida.
A tourada - aqui também aceite como algo de tolerável, o que valeu o azedume dos críticos menos complacentes com tal barbárie! - é inteligentemente utilizada por Almodovar como contraponto, mas com muito de semelhante, ao espetáculo de bailado, que tanto seduzia e voltará a entusiasmar Alicia. Cria-se, por esta via, uma oposição interessante entre a muito feminina e passiva Alicia e a máscula e hiperativa Lydia. Que a primeira obceque o falso feminil Benigno e a segunda cative o não tão viril Marco (um homem que não teme chorar!), mostra bem como os quatro personagens do filme revelam bem mais substância do que se, recriados por outro realizador menos hábil, potenciariam a sua redução a meros estereótipos.

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