quarta-feira, janeiro 31, 2018

(S) Paul Robeson, um herói do Século Americano

A mais recente edição da «The New York Review of Books» alerta para o recente lançamento de dois livros dedicados a esse verdadeiro monumento da música norte-americana, que se chamou Paul Robeson. É a oportunidade para recordar um artista imerecidamente esquecido que, além de excelente cantor, foi também um militante ativo das causas progressistas.

Simon Callow, que assina o artigo bastante crítico para com os dois livros - mas será de admirar que o faça tendo em conta a sua filiação no exército dos que veem a realidade da Guerra Fria pelo filtro mais maniqueísta? - reconhece, porém, quanto a voz de Robeson possuía em si o “sentido inerente da verdade”, acrescentando: “não havia artifício, não havia truques vocais, nada entre o ouvinte e a música. Cativava a atenção sem esforço, perfeitamente focado em algo de mais profundo, não apenas vindo da laringe, mas da experiência do que era ser humano.”
A sua interpretação de espirituais constituía autêntica descoberta para um público dos anos quarenta e cinquenta, que os descobria não apenas como canções de amor, de vida e de morte, mas também como gritos de escravos desejosos de uma vida melhor. Enraizadas no passado, esses temas testemunhavam  a opressão e a humilhação quotidiana dos negros, que os cantavam. E esse público via-o como o representante idealizado da sua raça: magnífico no aspeto, elegante na fala, inteligente e carismático sem parecer ameaçador.
Na década de sessenta ele desapareceu dos Estados Unidos, onde o FBI e a Casa Branca o apontavam como inimigo público, mudando-se para Moscovo, identificando-se com o regime soviético. Por essa altura estava em ascensão uma nova geração de militantes negros, que o viam como obsoleto para tempos, que exigiam ação mais determinada, até mesmo violenta.
As televisões deixaram de emitir os seus filmes mais famosos - «Sanders of the River» (1935) e «The Proud Valley» (1940), as rádios silenciaram-lhe os discos. Por isso mesmo muitos surpreenderam-se com a notícia da sua morte em 1976, pois julgavam que isso tivesse acontecido muitos anos antes.
Hoje poucos o conhecem nos dois lados do Atlântico apesar de ter protagonizado tournées extremamente vibrantes, que foram grandes acontecimentos artísticos no tempo dos nossos avós. E, no entanto, não é possível olhar para o século XX norte-americano sem referenciar a sua importância.
Nascido nos últimos anos do século XIX, ele tivera por pai um antigo escravo que, na época da Guerra Civil, fugira para o Norte e matriculara-se na universidade de Princeton, tornando-se pastor presbiteriano. Rigoroso com os filhos, impôs-lhes uma ética voluntarista, que explica a influência causada em Paul, que se viria a revelar um aluno modelo.
Estudioso, atlético, artisticamente talentoso, era igualmente um desportista, que cantava no coro da escola e dava os primeiros passos como ator aos dezasseis anos, altura em que interpretou pela primeira vez o Otelo de Shakespeare. Quando se formou em Direito houve quem lhe previsse um brilhante futuro político, mas logo desistiu da profissão, quando, num tribunal, um estenógrafo recusou-se a tomar notas ditadas por um «preto». Foi para Harlém e encetou carreira como ator em peças de Eugene O’Neill, como cantor de música afro-americana e jogando ocasionalmente futebol como profissional. Alcança a fama num ápice, tornando-se icónico nos dois lados do Atlântico como o rosto da cada vez mais afirmativa negritude.
A consciência política foi-se-lhe consolidando, tornando-se amigo de Kwame Nkrumah e de Jomo Kenyatta, que liderariam os movimentos de libertação africanos contra os regimes coloniais. Por toda a Europa foi-se interessando pela música popular procurando interpretar alguns dos seus temas nas línguas, que ia aprendendo para o efeito. Procurando superar as barreiras da língua, que lhe dificultavam a comunicação com povos, sobretudo com os do grande continente africano, que desejava conhecer melhor, matriculou-se na Escola de Línguas Oriental e Africana na Universidade de Londres.
A primeira visita a Moscovo aconteceu em 1934 numa tournée da peça «Stevedore», que abordava explicitamente a realidade racista. O público endoidou com ele e Eisenstein imaginou-o como protagonista do seu projeto (não concretizado) de «Jean-Christophe, imperador do Haiti».
Entusiasmado por, pela primeira vez na vida, ser tratado como um ser humano, não como um negro, decidiu matricular o filho numa escola moscovita. Mas já Espanha o atraía por ser campo de batalha contra o fascismo: cantando para as forças republicanas, que o receberam com grande entusiasmo. Quando discursava enfatizava a luta pela igualdade racial como importante vertente da luta geral contra o fascismo. Mais do que um artista, era respeitado sobretudo pela força moral.
A II Guerra Mundial encontrou-o mobilizado em inúmeras ações cívicas de apoio ao esforço militar, que acreditava capaz de contribuir para um mundo bem mais justo do que o existente até então.
Mas quando Hitler invadiu a Polônia e a guerra na Europa se agudizou, retornou à América para engrossar a luta pela liberdade democrática. Ele viu a participação americana na guerra como uma tremenda oportunidade para remodelar toda a vida americana e, acima de tudo, transformar a posição dos negros dentro da nação. Considerado um dos nomes maiores da cena artística de então as galas em que participava esgotavam todos os lugares disponíveis nas enormes salas de espetáculos de então.
A derrota nazi e nipónica não lhe proporcionou a sociedade, que sonhara: os GI’s negros, que regressaram às suas terras como heróis de guerra viam-se sucessivamente agredidos e assassinados por racistas brancos dispostos a demonstrarem que não estavam dispostos a aceitar qualquer mudança  no tipo de sociedade segregada, que teimavam em manter.
Quando  quatro afro-americanos foram assassinados na Geórgia, Robeson encabeçou uma delegação de três mil delegados, recebida por Harry Truman na Casa Branca, mas o presidente que lançaria a seguir a campanha anticomunista e daria azo à caça às bruxas dos anos seguintes, foi indelicado e saiu da sala, quando pressentiu a ameaça de lutas pelos direitos cívicos nas palavras do artista.
A  Administração Truman faria doravante tudo para desacreditar Paul Robeson, que se viu boicotado nos espetáculos e tournées  que se seguiriam. Discursando no Conselho Mundial da Paz, em Paris, ele diria: "Nós, na América, não nos esquecemos de que foi às costas dos trabalhadores brancos da Europa e dos milhões de negros que a riqueza da América foi construída. E estamos resolvidos a solidarizarmo-nos uns com os outros. Rejeitamos qualquer delírio histérico que nos exorta a fazer guerra a qualquer um." Esses comentários valeram-lhe o ostracismo geral da imprensa norte-americana e, pior ainda, o distanciamento dos cobardes, que lideravam as organizações afro-americanas. Quando apareceu num comício em Peekskill, quase se viu linchado.
Convocado pela Comissão das Atividades Antiamericanas, Robeson viraria a mesa que o separava do biltre que o interrogava, dizendo-lhe que nenhum fascista o expulsaria do país, que fora construído pelos escravos negros que tinham sido os seus antepassados. 
Vendo-se despojado do passaporte, tornou-se num prisioneiro no seu próprio país, impedido de atuar aonde o admiravam ainda mais em função da coragem com que mantinha a permanente denúncia da exploração dos trabalhadores, da opressão dos negros e da ambição imperialista do complexo industrial-militar.
Quando lhe devolveram o passaporte em 1958 mudou-se para Londres, voltando a interpretar o papel de Otelo no Shakespeare Memorial Theatre em Stratford-upon-Avon. Regressa igualmente a Moscovo, onde o continuam a idolatrar.
Só voltou aos Estados Unidos em 1963, quase se silenciando nos treze anos seguintes, amargurado pelo rumo que ali se tomara no pós-guerra, distanciado mais do que nunca da Utopia, que adivinhava nunca vir a testemunhar...

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