quinta-feira, agosto 11, 2016

(V) Um Shakespeare muito meritório nas Ruínas do Convento do Carmo

No mais recente «JL» Luís Miguel Cintra padroniza qual o tipo de espetáculo baseado em Shakespeare, que corresponde ao que o dramaturgo inglês terá criado há quatrocentos anos. Se nos ativermos a tais requisitos este «Cimbelino» chumba decerto nessa apreciação.
Mas o que o guru da Cornucópia estabelece não se coaduna propriamente com o pretendido pelo público, ou não o teria visto escapar-se-lhe em 2000, quando levou à cena este «Cimbelino» pela primeira vez em Portugal. E, pelo contrário, a versão agora levada à cena pelo Teatro do Bairro nas ruínas do Convento do Carmo, tem esgotado sucessivamente os 180 lugares de cada sessão, assim prometendo continuar a fazê-lo até domingo, quando concluir mais este ciclo de representações iniciado no mês passado durante o Festival de Almada.
Este não será um grande Shakespeare, até porque o texto em si é desigual e constitui uma espécie de digest de toda a obra do autor, sendo óbvias as conotações de muitas das suas cenas a outros dos seus títulos maiores, desde «Romeu e Julieta» a «Otelo», passando pela «Tempestade» ou pelo «Sonho de uma Noite de Verão».
Poder-se-á exigir coerência na sua estrutura, quando o texto em si é tão polémico, que houve dúvidas sobre quem o tenha verdadeiramente escrito? Mas como não nos rendermos a um espetáculo, que se conclui com o rei a proclamar «Estamos felicíssimos!»?
Neste tempo em que a nova governação à esquerda nos dá o alento, que a direita nos usurpou durante quatro anos, sabe bem ver uma peça onde o bem é recompensado e o mal punido com a morte. Porque hão-de os encenadores dedicar-se ainda a textos, que enfatizem o individualismo (que a crise do neoliberalismo tende a diluir no coletivo, devolvendo-nos às nossas indissociáveis circunstâncias) ou o pessimismo como se a esperança fosse proscrita?
Neste «Cimbelino» podemos levantar dúvidas quanto a algumas interpretações muito secundárias, porque além de meia dúzia de atores experientes, quase todo o elenco é constituído por aprendizes de feiticeiro, que uma escola de artes de palco está a formar, mas, de entre estes últimos, como não sublinhar o talento de Carolina Crespo no papel de Imogénia, fazendo-nos crer que ainda muito dela haveremos de ouvir falar?
A história segue-se com muito agrado, ora abordando amores contrariados, ora tornando-os palco de uma tragicomédia de enganos, enquanto a Britânia luta por manter-se independente da Roma imperial apesar do seu fraco rei e da sua pérfida rainha (Rita Loureiro até lembra mais a madrasta da disneyana Branca de Neve do que a Lady Macbeth a quem a crítica a associou).
Pelo meio surgem referências às Meninas de Velasquez e soluções cénicas com um coro, que se vai desmultiplicando noutras incumbências, entre as quais uma canção razoavelmente interpretada.
Poderíamos ter esperado uma utilização mais ampla do privilegiado espaço, mas isso obrigaria á utilização de equipamentos de som, porventura inacessíveis aos custos orçamentados para tal produção. É que não podemos esquecer como o teatro tem sido seriamente causticado pela (falta de) política cultural dos últimos anos, sofrendo os efeitos de uma austeridade, que se sente no seu produto final por muita imaginação, que se utilize para minimizar essa pobreza de meios. Razão final para que só se possa exprimir gratidão e admiração por quem, mesmo em tão adversa conjuntura, continua a aposta em dar-nos a expressão do seu talento.


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