domingo, agosto 07, 2016

(V) Má sorte ter nascido na Ásia

É evidente que há várias Ásias, tal como existem várias Europas, Américas ou Áfricas. Cada continente tem uma diversidade tão grande de realidades, que em todos se podem escolher as que são extremamente boas ou más consoante os pontos de vista.
No maior dos continentes terrestres Singapura é dos mais idolatrados por alguns, que até gostariam de para aqui exportar o seu modelo económico e social. Ora, tendo sido dos países que melhor conheci, aí permanecendo dias a fio enquanto esperava ou mudava de navio, nunca senti que fosse lugar onde gostasse de viver. Era verdade que as ruas estavam irrepreensivelmente limpas, porque qualquer papel atirado para o chão implicaria pesada multa, mas tratando-se de um regime musculado com muitas características ditatoriais, sentia-se bem esse incómodo de se dever estar permanentemente atento ao cumprimento de regras e leis que, em grande parte, desconhecia.
Muito mais agradável foi o Japão, onde tive demonstrações surpreendentes de uma simpatia insuspeitada. Mas em Tóquio raramente consegui ver o Fujiama, quase sempre envolvo numa neblina poluente, que impressionava pela sua constância.
Ali quase ao lado a China espantou-me por nela encontrar mais semelhanças comportamentais com os ocidentais do que em nenhum outro local das redondezas. Vivi quase dois meses em Xangai e a obsessão dos meus interlocutores pela imitação dos nossos modelos pecava por tais excessos, que caíam ridiculamente no que de mais kitsch se revelava.
Felizmente que nunca fui ao Bangladesh ou ao Paquistão, e a Índia só foi aflorada levemente numa breve escala em Bombaim. Porque pior do que os seus cenários humanos de desolação só os das guerras no Iraque, no Afeganistão, na Síria ou no Iémen. E foi isso que pude confirmar em dois documentários que hoje vi, um deles sobre o negócio dos curtumes em Dacca e o outro dedicado aos crimes de honra no Punjab.
«Leather: Slaves to fashion» denuncia como os consumidores ocidentais, apostados em adquirir sapatos, malas e outras peças de vestuário e acessórios em pele pelo mais baixo preço, andam a favorecer um tremendo desastre ambiental e humano na capital bangali. É que a concorrência faz uma tal pressão sobre os preços, que as grandes marcas europeias destinadas a clientes do espetro médio/baixo tornam-se clientes de empresas onde as condições de trabalho são dignas de um dos círculos do Inferno de Dante.
O recurso intensivo a trabalho infantil, a imposição de horários de 12 ou mais horas diárias sem direito a férias ou folgas, a inexistência de meios de proteção individual para acautelar o manuseamento de produtos químicos extremamente tóxicos e o envio de líquidos residuais para os rios, são só alguns dos exemplos demonstrados num documentário igualmente elucidativo quanto à cumplicidade do governo local com os seus influentes industriais. Se a legislação até existe nunca é cumprida, do mesmo modo que as raras sentenças judiciais a inculpar os poluidores jamais são acatadas pelos seus responsáveis.
O que se constata em Dacca é a sua transformação num cenário distópico, que ultrapassa a imaginação da maioria dos argumentistas cinematográficos.

O outro documentário, que recebeu o Óscar deste ano para a melhor curta-metragem na categoria, ganhou ainda mais pertinente atualidade com o caso recente da jovem muito conhecida nas redes sociais, que o irmão estrangulou para que não continuasse a «envergonhar a família». «A Girl in the River: The Price of Forgiveness» que foi realizado por Sharmeen Obaid-Chinoy, acompanha o caso real de uma rapariga paquistanesa de 19 anos a quem o pai e o tio quiseram matar, alvejando-a a tiro e enfiando-a num saco para depois a atirarem ao rio, donde se salvou quase milagrosamente. O seu «pecado» fora o de querer casar por amor em vez de aceitar o pretendente escolhido pelo tio.
Os dois criminosos são presos, mas a rapariga é instada pelos homens mais influentes do bairro a perdoar aos agressores, que são assim libertos pelo tribunal.
Obviamente que este desiderato não agrada à ofendida até por ter a consciência de como premeia com a impunidade a força dos preconceitos e da subjugação feminina aos homens em nome de um Islão, que se confirma como uma religião passível de legitimar a quem nele crê os comportamentos mais abjetos.



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