Quem me ofereceu o mais recente romance da Élisabeth Barillé - «L' Oreille d’Or» - considerou que eu deveria encontrar muitas pontes de contacto com o que a escritora francesa nele assumiu num registo autobiográfico muito comum nos seus compatriotas. É que, tal como comigo sucede, ela só ouve de um lado, estando o outro praticamente morto.
Vivemos, porém, experiências distintas: enquanto ela assim se descobriu ainda criança, na sequência de uma virose, eu perdi a audição dobrado o meio século de vida como resultado de uma operação destinada a devolver-me o sentido de equilíbrio, tão frequentemente posto em causa pelo disfuncionamento dos pequenos cristais existentes no nosso ouvido interno.
Se Elisabeth Barillé quase considera uma bênção o ter perdido prematuramente metade de um dos seus principais recetores da realidade circunstancial, eu só prezo o facto de, apesar de surdo, raramente ter voltado a ter as crises devidas ao síndrome de Menière. Quanto à possibilidade de ter sido compensado sensitivamente com essa perda não dei por isso: sei que durante muito tempo não voltei a ter prazer em frequentar concertos - e se era então um frequentador assíduo dos que passavam na Gulbenkian ou no CCB - evitando, igualmente, os ambientes muito barulhentos, com sons provenientes de várias direções como sucede nos restaurantes ou nas feiras ao ar livre.
O testemunho da escritora é, pois, bem diferente do meu: na crise viu a oportunidade para justificar a apetência pela solidão e para «ouvir» a realidade de forma diferente da que conhecera. E lembra como Beethoven, apesar de ter perdido a audição, nunca deixou de escutar os sons, que o seu talento criativo fazia germinar.
Por isso agradece aos pais nada terem feito para lhe devolverem essa perda: “se me tivessem preferido perfeita, se me tivessem confiado aos especialistas universitários, nunca teria encontrado a solidão, não a sentiria como um deserto desejoso de ser florido e teria encaixado numa vida completamente diferente. Passaria ao lado desta oportunidade”.
«L' Oreille d' Or» acaba por ser uma odisseia intima de quem, da desgraça, vai forjar a Graça. Da sua deficiência, um tesouro. O que não se revelou tarefa fácil ou isenta de sofrimento, que, porém, só no-lo sugere, porque nada temos que saber desse lado do seu percurso.
Pelo contrário ela partilha connosco a alegria de ter concluído que só lhe restaria ser ela mesma, preservando-se dos constrangimentos sociais e descobrindo espaços de magia. Como foram os propiciados pelos livros, já que assim surgem as vocações: “ao empurrar-me para a fuga, a surdez empurrou-me para a aventura da introspeção”. Até por lhe ser fácil concluir que, quando escreve, ouve dos dois lados. E é muito apurada no resultado: as palavras são as certas, cada frase sem nada a mais, sem as tais asperezas que Hemingway elogiava como sendo requisito fundamental para que o livro seja oportunidade de nele deslizarmos.
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