O JL anterior trouxe um interessante dossiê de seis páginas sobre o centenário de Mário Dionísio.
Porque não tive o privilégio de ser seu aluno (como orgulhosamente se reclamaram Luís Miguel Cintra e Jorge Silva Melo!), nem costumo ser bafejado pelo lirismo dos deuses que comandam os poetas, nunca lhe dei a merecida atenção. Li-lhe os contos quase à saída da adolescência sem me terem impressionado, embora tenha agora aguçado a curiosidade em os reler até por persistir numa das estantes domésticas essa edição dos Livros de Bolso da Europa-América.
O que me sugerem, porém, os diversos artigos é a datação do debate sobre o neorrealismo, que afastou Dionísio de alguns dos seus camaradas de então e o sujeitou a dolorosos ataques pessoais.
À distância de tantas décadas é hoje pueril a discussão sobre se a arte deve ou não manter a presunção de estimular quem combate pela transformação da injusta realidade.
Terão andado mal os que defenderam a excelência do «nouveau roman» e abriram assim a porta a tantas obras hoje dificilmente digeríveis, porque excessivas no umbiguismo e na pretensão de criarem estilos só destinados a complexificar a compreensão do que era simples.
Ao quase imporem a condição de proscrito ao neorrealismo execraram autores, que mesmo dele não se reclamando, nunca deveriam ter sido empurrados para um olvido apenas pelo facto de terem sido militantes ou meros «compagnons de route» dos comunistas.
Alves Redol, Soeiro Pereira Gomes, Manuel da Fonseca, mas também José Gomes Ferreira, Aquilino, Ferreira de Castro, Augusto Abelaira ou Urbano Tavares Rodrigues têm sido esquecidos em nome de modas passageiras, que empolaram o filosofismo bacoco de um Vergílio Ferreira, homem agastado consigo mesmo e com os outros, e cuja cosmogonia individualista pareceu adequar-se a esse período em que importava sobretudo a interrogação do eu, a “revolução individual”, a meritocracia do talento de cada sujeito em particular, subalternando a relevância das influências e das dinâmicas coletivas.
Como diria o Eduardo Lourenço não temos que ser melhores, nem piores do que os outros, e isso implica aceitarmo-nos a nós mesmos, trabalhando no que nos pode fazer sobressair as virtudes (a generosidade, a fraternidade, o desejo de Utopias) e esmagar os defeitos (a inveja, a ganância, a mesquinhez). Porque é assim, com base no trabalho coletivo e na sadia ambição, que se ganha por exemplo um Europeu de futebol nas circunstâncias em que ele aconteceu.
Dionísio também viveu um crepúsculo amargurado, que o parecia fadado a aproximar-se do arauto de Fontanelas, tanto mais que saíra do Partido Comunista e desgostara-se com o comportamento canalha de alguns dos sues antigos amigos. Antes de encontrar a felicidade na exclusiva dedicação à pintura nos seus anos crepusculares ele via-se semelhante àqueles católicos que, ao morrerem, descobriam atónitos nada mais existir.
Neste século XXI em que a luta de classes volta a ser indesmentível realidade, os neorrealistas e aparentados merecem ser recuperados, porque voltam a ter pertinente atualidade. E de entre os que não deixaram de ser por eles influenciados, Saramago exige que o não deixemos ostracizar com o mesmo tipo de subalternização como o desejariam os donos dos jornais e televisões, todos eles conotados com o cavaquismo, que tão crapulosamente se mostrou para com ele.
Mais do que um Pessoa, que corresponde a esse primado do eu sobre o nós, Saramago deve ser de leitura obrigatória ou não fosse ele o único dos escritores portugueses a merecidamente ser reconhecido com o Nobel.
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