quinta-feira, agosto 11, 2016

(L) A minha leitura de «Em Teu Ventre» de José Luís Peixoto

A minha relação com o que sucedeu em Fátima em 1917 é muito antiga. Muito miúdo, costumava acompanhar a família na peregrinação anual, que se fazia pelo 13 de maio ou pelo 13 de outubro, e era um ajuntamento de várias gerações e de uns quantos amigos próximos.
Uma noite o meu pai protegeu-me de uma súbita movimentação da turba junto ao edifício do santuário, porque a chuva começou a cair e todos quantos esperavam pela procissão das velas ali acorreram a abrigar-se na parte mais protegida da intempérie.
Recordei esse episódio na cena quase final do romance de José Luís Peixoto, quando Lúcia, Francisco e Jacinta são levados pela multidão depois da derradeira visita da Nossa Senhora. E como que me voltei a sentir no colo do meu progenitor, situação que era rara e por isso se tornou mais valiosa nos meus três ou quatro anos, porque, se dúvidas houvera, tinha ali a demonstração de uma proteção ainda então imprescindível.
Não sei quando me desafeiçoei de Fátima como lugar de magia, pelo menos pelo contentamento dos piqueniques em família ou pelas histórias fartas, que o meu avô sempre tinha para contar sobre o seu tempo de guerra na Flandres. Uma guerra, que também está presente no livro de José Luís Peixoto como uma ameaça latente, quanto mais não seja, porque Manuel, o irmão de Lúcia está na idade de para lá ser arregimentado.
Creio que passei a olhar para tudo aquilo como cenário incongruente, quando os norte-americanos começaram a avançar com o programa Apollo e se iam aproximando pouco a pouco da Lua. Nos meus verdes anos a pergunta começava a ser óbvia: onde é que na vastidão de um Universo, que ia descobrindo cada vez mais infinito, haveria algum lugar para Deus? Até porque lá em casa, a irmã mais velha arranjara um livro de poemas de Vinicius de Moraes e um deles, quase nas últimas páginas, proclamava Deus morto de cancro.
Nos últimos anos em que fui a Fátima, já adolescente,  acentuou-se a ideia de se tratar de um gigantesco teatro do absurdo. O meu jovem agnosticismo ia evoluindo para este ateísmo, que a maturidade da iminente velhice só vem consolidando.
Sou dos tais que nunca me senti tocado pela graça da fé, nem sequer de raspão. Materialista dialético me tornei e nesse tronco filosófico construí a coerência das opções desde então tomadas. Por isso mesmo tive relutância em ler o romance de José Luís Peixoto, que sabia ser sobre os três pastorinhos. Que poderia ele trazer-me de novo sobre um assunto há muito arrumado no meu crítico juízo? Num certo sentido cometi a leviandade de pensar que a opção do escritor por tal tema tinha toda a lógica depois das suas viagens à Coreia do Norte. Afinal, um e noutro caso, revelam-se exemplos radicais da mais profunda religiosidade.
A opção pela leitura revelou-se muito oportuna, não só porque o livro é escrito com uma excelência, que confirma a maturidade do autor, mas por ir muito além do tema da fé ou de como se cria um fenómeno religioso. Ao escolher um registo polifónico, com várias vozes a sobreporem-se, ganham relevo as das mães, desde a de Lúcia à do próprio escritor, ora severas nos seus juízos, ora desesperadas na necessidade de encontrarem esperança.
Há também o ceticismo da Igreja de então sobre a justeza de tais aparições - e sabemos bem como o clero desconfiou então das revelações de Lúcia antes de delas se apropriar em benefício próprio como se viu desde então! - e essa sensação de um país atrasado e atarantado entre uma monarquia que já se acabou e uma República incapaz de se alojar no coração dos que deveriam ser os seus cidadãos.
Ao chegar à última página revelei-me rendido ao romance, que tem o mérito não despiciendo de tanto ser lido com agrado pelo mais impenitente dos ateus (o meu caso!) como pelo mais crédulo dos cristãos. Com o complemento de tudo quanto ali se conta parecer completamente credível.


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