Desde a adolescência, que sempre me habituei a ler vários livros ao mesmo tempo.
Às vezes julgaria preferível concentrar as leituras quotidianas num título em concreto, mais rapidamente desvendado, mas, ensaiando-o, logo volto aos meus cristalizados hábitos.
Nesta altura ando a ler vários romances em simultâneo, dois deles passados em Espanha apesar de nenhum dos autores ali ter nascido.
Com «Nada de Lágrimas» a francesa Lydie Salvayre ganhou o Prémio Goncourt de 2014 e adotou o registo autobiográfico para contar o incrível mês de agosto de 1936, quando a própria mãe viveu o momento mais exaltante da sua longa existência.
Então com quinze anos Montse saíra da aldeia onde os camponeses não se tinham entusiasmado duradouramente com o discurso libertário do irmão, e acompanhara-o na descoberta da Barcelona republicana.
A vivacidade de uma cidade em turbulência, com estalinistas, anarquistas e trotskistas a imitarem os que discutiam a existência dos anjos quando Constantinopla estava cercada pelos bárbaros, lembra quanto as esquerdas perdem, quando se dividem nos respetivos dogmatismos.
Mas há também a evocação do escritor católico Georges Bernanos, então a viver em Palma de Maiorca, onde acolhera com entusiasmo o levantamento franquista e depois ficara rapidamente abalado com os crimes horrendos praticados pelos sicários nacionalistas sempre apoiados por um clero totalmente dissociado do que deveriam ser os preceitos humanistas da sua fé.
Em «Les Cimetières sous la lune», publicado em 1937, revelaria essa transformação ideológica de quem, nunca abdicando da sua fé, passou a desconfiar justificadamente dos que em seu nome matavam, violavam e torturavam.
O britânico Robert Wilson é o autor de «As Mãos Desaparecidas», cuja ação passa-se em Sevilha num dos seus asfixiantes estios.
Vivendo no Alentejo, o escritor inventou uma personagem, Javier Falcón, que é um inspetor andaluz a contas com o aparente suicídio do casal Vega, mas cujo local do crime lhe suscita dúvidas quanto a tal explicação.
À medida que avanço na intriga vão surgindo as diferentes combinações de atividades da mafia russa e ucraniana, que controla os negócios da droga, da prostituição e do trabalho forçado de centenas de compatriotas a ela submetidos. Seriam eles os culpados do homicídio, que começa a definir-se com a evolução dos dias?
Mas o próprio Rafael Vega torna-se progressivamente mais complexo do que pressuporia a sua atividade de patrão imobiliário, sendo possível que o venhamos a descobrir como antigo carrasco de uma das ditaduras da América do Sul. Acaso isso se venha a confirmar, teremos ambos os romances interligados pela preocupação em denunciar o fascismo, quer nos anos 30, quer mais recentemente além-Atlântico.
Embora enquadráveis em géneros literários diferentes, quer Lydie Salvayre, quer Robert Wilson aproveitam a ficção para trazer a lume algumas das questões pertinentes da atualidade espanhola.
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