A comemoração do centenário do nascimento de Léo Ferré continua-nos a trazer novas facetas sobre a sua vida e obra: no documentário «La Mémoire des Étoiles» ficamos a saber dos abusos sexuais a que terá sido submetido no internato religioso onde a mãe o matriculou em criança e razão mais do que justificada para o seu ódio às sotainas. Mas a relação com Satã é por ele explicada em entrevistas inseridas no filme de Franz Vaillant, elucidativas também quanto ao seu carácter efabulatório.
Numa delas, Ferré conta que, em 1956, aconteceu-lhe passear com André Breton nos Campos Elíseos, quando deu com um homem de chapéu a olhá-lo fixamente na esquina com a Rua Washington.
Num dos dias seguintes apareceu na televisão e, logo reencontrou o mesmo homem a interpelá-lo pelo nome e a convidá-lo a subir ao seu apartamento para ver algo que muito o interessaria.
Embora a televisão estivesse então nos seus primórdios, o homem misterioso mostrou-lhe a ampla parede de um enorme salão coberta com pequenos ecrãs cheios de imagens em movimento, que poderiam ser individualmente selecionadas para um de maior dimensões que estava no centro desse desfile de espantosa tecnologia.
O anfitrião escolheu um dos pequenos ecrãs e ampliou a imagem para o que possibilitava uma compreensão mais adequada do seu conteúdo. O que Ferré viu estarreceu-o: um terrível desastre numa autoestrada com carros destruídos, corpos estropiados e muito sangue derramado no asfalto. Mas o que logo cativou a atenção do escritor foi o rosto de uma mulher a olhar para tudo aquilo num canto do ecrã.
- Foi a mais bela mulher que jamais vi na minha vida! - confessa para a câmara.
Mas foi a resposta do interlocutor a esclarecê-lo quanto à sua identidade:
- Trata-se da minha única rival: é a Morte!
Fica assim encontrada a chave para uma melhor compreensão das canções em que Ferré interpelava ou falava de Satã.
Noutra entrevista, mais tardia e efetuada na quinta italiana onde passou os seus últimos anos de vida, Ferré conta outra experiência do mesmo tipo, quando estava em casa sozinho com a mulher-a-dias e o telefone tocou.
Do outro lado do aparelho ouviu uma voz incrivelmente sedutora de mulher que se apresentou:
- Sou a Morte! - e logo desligou.
É evidente que estas estórias valem o que valem, mas enquadram-nos no imaginário de um homem genial, com uma enorme paixão pela melhor poesia francesa, que musicou (Aragon, Verlaine, Rimbaud, etc) e sempre se considerou um anarquista consciente das suas contradições. Ademais, um compositor de temas lindíssimos, que atingiria porventura estados superiores de criatividade se as circunstâncias tivessem-lhe propiciado uma derivação mais confortável para a música erudita em vez da chanson onde teve de encontrar sustento para si e para a família.
O documentário de Vaillant ainda aborda a enorme tragédia em que se concluiu o segundo casamento, quando a rutura significou a morte de todos os animais com que mantinha particular afeto na sua quinta provençal. Nomeadamente o chimpanzé Pépée, que quase estimava como se de um filho seu se tratasse.
Daí que mais do que o quanto tudo se esvai com a passagem do tempo («Avec le temps tout s’en va!») ele tenha sido o autor de um dos textos mais apocalíticos de quantos foram cantados na língua francesa: «Il n’ya plus rien!»
Sem comentários:
Enviar um comentário