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sábado, fevereiro 20, 2016
LEITURAS AVULSAS: Shostakovich segundo Julian Barnes
No mês passado chegou às livrarias inglesas o mais recente romance de Julian Barnes que, desde a descoberta de «O Papagaio de Flaubert», passou a ser o meu escritor preferido de quantos publicam no reino de sua majestade.
Em «The Noise of Time» Barnes imagina o diálogo interior do compositor russo Shostakovich que equaciona as suas fraquezas de carácter e o relacionamento problemático com o regime estalinista.
Três datas separadas em ciclos de doze anos, e todas elas em anos bissextos, revelam-se fundamentais nessa introspeção irónica: 1936, 1948, 1960.
Em 1936 Shostakovich vê a sua ópera «Lady Macbeth de Mtsensk» condenada pelo regime, quando estava a iniciar-se uma purga, que abrangeria muitos dos intelectuais de então, alguns dos quais amigos do compositor. Ele próprio chega a preparar uma mala para levar para o goulag alguns objetos de primeira necessidade.
Em 1948 é convocado para uma espécie de processo disciplinar na União dos Compositores, presidido pelo temível Jdanov, e vive ainda maior humilhação durante uma viagem à América em que Stravinsky, acabado de aí se naturalizar, o confronta com a sua condição de representante de um regime diabolizado pelo macarthismo crescente.
Em 1960 adere ao Partido Comunista, já com Khrushchev como sucessor de Estaline, e em que não sente a esperada adulação de amigos e admiradores.
Barnes não apresenta Shostakovich como um herói, pois prefere a evasão como reação habitual perante as contrariedades. E é um homem sobre quem as mulheres têm um enorme ascendente. Primeiro a mãe, de forte personalidade, e depois a esposa cientista, Nita, com quem consensualiza uma relação conjugal aberta. Será numa viagem com o amante pela Arménia que ela adoce subitamente e morre em 1954.
Nos anos que se seguirão ele confessa a perturbação causada por, sempre que visitava o túmulo dela, o encontrar adornado por flores, que não fora ele a encomendar, O que o leva a admirar esse rival, que soubera amar e ser amado por ela.
As únicas alturas em que se confessa com orgulho bastante para se sentir confiante no regresso a casa é nas noites de concertos bem sucedidos em que ecoam nele as palmas do público.
O Dimitri de Barnes só revela verdadeira confiança na música, que cria. E, mesmo assim, não enfrenta frontalmente quem lhe sugere alterações ao que compusera: propõe-se fazer essa mudança na próxima vez e nunca o faz.
Ao longo de todo o livro sente-se que ele é o típico intelectual russo do regime ao qual imputa o perigo de lhe ameaçar a individualidade, meditando sobre tais intenções e acabando por satiriza-lo quanto ao seu estilo.
Em vez de pretender assumir-se como herói num qualquer episódio, que depressa o aniquilaria, Shostakovich só pode ser um cobarde pertinaz, o que ele sente como um certo tipo de coragem. E para quem a música constituiu uma forma de abafar o ruído do tempo e valer por ela mesma.
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