Quem me conhece sabe da fase maoísta por que passei logo após o 25 de abril. Embora vivesse grande parte dos anos seguintes a cirandar pelos oceanos atlântico e índico a bordo dos petroleiros da Soponata, ia acompanhando os acontecimentos nacionais e internacionais de acordo com a vulgata dos Grandes Educadores da Classe Operária, quer em Pequim, quer em Lisboa.
Hoje sei que esse não é grande cartão de visita, que se apresente, mas a vida é como é, e aprende-se muito mesmo quando, anos depois, se olha para trás e se pensa: “como podia acreditar que os jovens revolucionários chineses iam para a praia com uma bandeira na mão e o livrinho vermelho na outra?”.
Foi a evocar esse passado mais longínquo, e outro mais recente, quando vivi alguns meses de 1998 em Xangai, que me pus a ver o documentário rodado em Xunqim pelo australiano Nick Torrens durante onze anos para verificar a evolução do pensamento de três gerações sucessivas de chineses.
A primeira dessas gerações corresponde à dos mais velhos, aqueles que sofreram na pele o fanatismo da Revolução Cultural ou dela se assumiram como lídimos defensores e por isso se viram na condição de carrascos.
Hoje, os primeiros só querem esquecer os anos passados em campos de trabalhos forçados, enquanto os segundos arrependem-se dos crimes, mas continuam a admirar o Presidente Mao. Essa é também a geração em que o sonho maior era ter um relógio, um rádio e uma bicicleta. Isso devolve-me à memória da experiência pessoal no estaleiro de Pudong e para a alegria do meu intérprete, Deng, quando apareceu um dia todo orgulhoso com a bicicleta acabada de comprar e que passou horas e horas a experimentar no cais junto ao portaló do «Fernando Pessoa», o navio onde então era Engenheiro Chefe de Máquinas.
Vindo de uma vila do interior situada a mais de dois mil quilómetros de distância da grande metrópole, ele sempre me pareceu o parolo embasbacado com tudo quanto via na grande cidade.
Foi essa a geração, que rapidamente progrediu e ganhou uma qualidade de vida cada vez mais desafogada, expressa no filme pela rapariga capaz de confessar para a câmara que preferiria chorar no interior de um BMW do que rir numa bicicleta. Ansiosa por casar, consegue-o à força de muita persistência junto do pouco convencido namorado, cuja mãe não poupava em críticas à indesejada nora.
Para Lei, a jovem dona da casa-de-chá, que nos vai servindo de cicerone em quase todo o filme, a situação atual insatisfá-la. Ela desejaria que a sociedade questionasse a História recente desde os tempos da Revolução Cultural até ao esmagamento da revolta da praça Tiananmen, mas só encontra indiferença à sua volta.
Ao abordar esses tempos difíceis só encontra a incompreensão dos acomodados ou o medo dos que se acobardam. É por isso dela o terceiro sonho do documentário: o de ver os seus contemporâneos ocuparem-se com as grandes questões quanto ao sentido da vida, depois de terem sucessivamente alcançado as fases de conseguirem as bicicletas, e depois os automóveis de topo de gama.
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