Há quarenta anos, quando eu e a Elza casámos, livrámo-nos dos convidados do copo-de-água atravessando o rio e indo para Lisboa ver uma peça então em cena no Maria Matos, com Raul Solnadoa desempenhar o papel do soldado Chveik.
Já conhecíamos a história, porque a lêramos num dos primeiros volumes da então pujante coleção de bolso da Europa América, mas a interpretação de um dos melhores atores nacionais conferiu-lhe outro colorido, a tal ponto que nunca mais o personagem de Hasek ganhou outro rosto no nosso imaginário.
Na época a proposta da sala, ainda gerida por Igrejas Caeiro, fazia todo o sentido: a guerra de África concluíra-se ano e meio antes, estando bem presente o antimilitarismo, que levara tantos jovens a escaparem à guerra a pretexto da posição ideológica anticolonial.
Ainda que escrito entre 1921 e 1923 o texto do escritor checo constituía uma sátira impiedosa ao carácter absurdo da guerra, embora temperada por muitos episódios pícaros.
Hasek inventara o personagem dez anos anos, pois, em 1911 já ele surgia nalguns contos de teor antimilitarista. E, no ano seguinte, até se publicaria uma antologia intitulada «O Bravo Soldado Chveik e Outras Histórias Bizarras», onde ele era apresentado como um idiota metido num uniforme e capaz de, com a sua estupidez fingida ou real, pôr o exército austríaco em sérios apuros.
Essas prequelas serviram de rascunho para a obra definitiva em que ele era um homem do povo que, mesmo nas condições mais difíceis, fazia prevalecer a aspiração à Liberdade.
De início Hasek dá-nos a conhecer a atmosfera vivida em Praga pouco antes do atentado de Sarajevo e da subsequente declaração de guerra.
Chveik é então metido num comboio em direção à frente de batalha com a paisagem a ficar progressivamente despojada e a dar maior ensejo para a descrição das suas sucessivas vivências. E, em vez do aparente idiota, é um autêntico filósofo o que se revela, mesmo aparentando subserviência à hierarquia militar.
O livro ficaria incompleto, porque Hasek morreria enquanto o estava a redigir, mas ele apresenta histórias de um grande número de personagens.
Nas suas aparentes contradições, Chveik tem sido estudado por sucessivos especialistas, que dele multiplicaram as interpretações possíveis. Mas, invariavelmente, os oficiais são sempre objeto de troça, enquanto representantes da grotesca e decrépita monarquia austríaca. A gente simples, por seu lado, é sempre tratada com simpatia.
Convivendo com uns e outros, Chveik contribui para deles se gerar uma eloquente síntese. E, embora haja quem o negue, é incontornável a comparação com Sancho Pança.
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