Desde que assumiu a identidade de «Ideal Paraíso», o antigo cinema do Loreto passou a ser um dos que mais frequento em Lisboa por facilmente aí encontrar filmes de superlativa qualidade.
Ontem vimos ali dois documentários do chileno Patrício Guzman rodados num intervalo de cinco anos: «Nostalgia da Luz», de 2010, tem o deserto de Atacama por cenário privilegiado, enquanto «O Botão de Nácar», de 2015, situa-se na Patagónia Ocidental e nas Terras do Fogo. Para completar aquele que promete vir a ser um tríptico, Guzman conta ainda assinar um outro filme na cordilheira andina.
«Nostalgia da Luz» inicia-se num dos muitos centros astronómicos, que aproveitam as condições perfeitas de observação celeste propiciada pela atmosfera límpida e seca do deserto. Algumas das descobertas de outros planetas e de galáxias distantes, ocorridas nos últimos anos, foram aí alcançadas. E, nos espectros dos astros distantes, cientistas detetam cálcio, matéria fundamental para a existência de seres vivos. Ora, ali bem perto, um conjunto de mulheres prosseguem o laborioso trabalho de prospeção do cálcio outrora existente nos ossos dos seus maridos, namorados, filhos irmãos, e cujos corpos foram ali abandonados pelos assassinos a soldo de Augusto Pinochet.
Quando veem os telescópios apontarem para os céus estrelados, elas bem gostariam que tivessem a capacidade de se orientarem para a terra e a analisassem em profundidade para revelarem a localização das muitas valas onde ainda estão soterrados os desaparecidos remanescentes do total de vítimas da ditadura chilena.
Num dos documentários um dos entrevistados insurge-se contra a barbárie protagonizada pelos militares chilenos: desde a Antiguidade que sempre foi tácita a autorização dos vencedores para que os familiares dos vencidos retirassem os corpos dos campos de batalha. É que só mediante o ritual do funeral essas famílias poderiam aceitar a morte efetiva dos seus entes queridos e capacitarem da necessidade de prosseguirem com as respetivas vidas.
No Chile esse respeito pelos familiares dos assassinados não se verificou: por isso mesmo muitas dessas mulheres sabem que nunca deixarão de procurar incessantemente os seus desaparecidos. Porque até lá não conseguirão aceitar a evidência dessa morte…
Em «Botão de Luz» passamos das estrelas e do cálcio para a água. No século XIX o sul chileno ainda tinha cinco grupos distintos de índios, mas quase todos eles seriam dizimados até à extinção, através dos «caçadores» enviados em sua intenção pelos latifundiários apostados em se livrarem de quaisquer obstáculos à implantação de enormes manadas de gado nas vastas planícies do sul do continente.
Esses povos viviam junto ao oceano e dele retiravam quase todo o sustento, O que não tinham era armas, nem outros meios capazes de travarem a perseguição assassina de que foram objeto.
Quase um século depois também aí se criaram centros de tortura e de detenção de prisioneiros políticos, cujos cadáveres eram frequentemente despejados no oceano amarrados a carris de caminho-de-ferro.
Por muito que já detestássemos a ditadura sinistra de Pinochet, Guzman consegue denunciá-la com uma veemência, que só aumenta a dimensão da nossa repulsa. Sem deixar, ainda assim, de nos oferecer imagens de redentora beleza...
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