Há muito que considero como livros da minha vida, aqueles que levaria para a tal ilha desértica, o «Memorial do Convento», «Os Cem Anos de Solidão» e «Confesso que Vivi». Saramago, Garcia Marquez e Neruda estão, de facto, no topo dos escritores que mais admiro, não só pelo talento superlativo, mas também pelo posicionamento ideológico progressista.
Mas o livro que maior gozo me deu, até por o ler em situações excecionais, foi «O Nome da Rosa» de Umberto Eco. Foi em 1979, quando desempenhava funções de 2º Oficial no superpetroleiro «Neiva» e vivia uma inesquecível viagem entre a Grécia e o Golfo Pérsico, Atlântico abaixo e Índico acima.
Inesquecível pelas pessoas, já que integrava uma tripulação de excelência. Havia o Comandante Mesquita, sempre simpático e suficientemente pragmático para ter mandado vir, a meu pedido, uma caixa de líchias em Capetown, fruto que teve tão pouco sucesso a bordo que, gulosamente, eu, ele e o 1º Oficial de Máquinas, o Antonino, demos conta delas dando graças a que os outros as qualificassem de todos os defeitos. Esse mesmo Antonino, que convivera com o grupo dos revoltosos de 1961, que tinham falhado o ataque ao quartel de Beja, e tinha uma filosofia de vida com que sentia enormes afinidades.
Infelizmente, um de morte súbita durante uma reparação na Lisnave de Cacilhas e o outro, em estado vegetativo durante muitos anos, após um ataque cardíaco, tiveram desenlaces trágicos pouco tempo depois.
Havia, igualmente, o Chefe Ramos dos Santos, fumador tão inveterado, que, eu próprio, por inconsciente mimetismo, queimei cigarros nessa época como nunca mais se repetiria.
Mas a viagem seria particularmente tormentosa pelas frequentes paragens para ir reparando o tubular da Caldeira Principal, que obrigaria a demorada reparação no Barhain ao chegar ao Golfo.
Foi, nesse contexto, que fui lendo dois livros, definitivamente associados a tais vivências: «O Diabo e o Bom Deus» de Sartre e «O Nome da Rosa».
Por norma trabalhava entre as quatro da manhã e o meio dia, dormia uma sesta depois de almoço e às três ia para a piscina, tomava um banho e ficava ali a ler meia hora antes de regressar à Casa das Máquinas às quatro da tarde.
Foi, pois, com o Sol no zénite, a brisa marítima a aflorar-me a pele e o relativo silêncio de uma instalação a turbinas ouvida do convés superior, que fui acompanhando as vicissitudes de Guilherme de Baskerville e do noviço Adso na abadia beneditina situada algures entre a Provença e a Ligúria.
Só veria o filme anos depois, mas a escrita de Eco revelou-se tão impressiva, que as imagens depois criadas por Jean Jacques Annaud surgiram prenunciadas na minha própria mente.
Chegado a meio do livro, e com a sucessão de crimes a aumentar, tive de, durante algumas noites, restringir o tempo de convívio no salão depois do jantar para rapidamente regressar ao camarote e devorar mais umas quantas páginas.
Se esse era um tempo em que as inquietações políticas com a realidade portuguesa ainda estavam bem vivas - a AD de Sá Carneiro preparava-se para virar significativamente o rumo da política pós-Abril - o romance permitiu fazer um parêntesis de exclusivo entretenimento no debate permanente com quem pensava de forma diferente (quão vivas eram então as discussões às refeições!).
Na morte de Eco agradeço-lhe vivamente os excelentes momentos que me proporcionou como leitor. E não posso deixar de acrescentar a afinidade complementar de ambos termos no 2º andamento da 7ª Sinfonia de Beethoven - o Adagietto - um dos temas musicais mais prezados. A seu respeito, confessou que, um dia, em Turim, quando só conseguiu assistir a um concerto em lugar donde não via a orquestra, chegou a chorar, quando a ouviu interpretar esses oito minutos de magia e se sentiu em estado de graça.
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