Fascinante a personalidade de Alice Sommer, tal qual a descobrimos no documentário «The Lady in number 6» de Malcolm Clarke.
O documentário começa com a ilustração de uma rua pacata do norte de Londres onde, amiúde, as pessoas paravam em frente a uma residência donde provinha o som de grandes peças para piano, interpretadas com inegável competência.
Em 2012, quando foi rodado, Alice tinha 109 anos e era a mais idosa sobrevivente dos campos de concentração nazis. Com a precisão de um relógio de cuco, iniciava os exercícios musicais às dez em ponto, porque sempre considerou inalienável a associação do talento natural e do trabalho para o potenciar. Até ao fim - que ocorreria em 2014 - nunca quis deixar de fazer jorrar dos seus dedos a beleza inerente às composições de Bach, Beethoven, Schubert, Brahms, Schumann ou Chopin.
Nascida em Praga numa família judaica onde se dava grande importância à cultura - Mahler ou Kafka integravam o círculo de amigos dos pais - a própria Alice começou cedo a dar sinais de vir a dedicar a vida à expressão artística mais próxima da essência divina.
Já a guerra se colocava como ameaça, quando casou com um violoncelista talentoso de quem teve o filho, Raphäel que, aos três anos, a surpreendera a chorar por achar tão bela a música que estava a ouvir.
Não o adivinhava, mas estava então a viver a época mais feliz da sua longa vida.
A ocupação da Checoslováquia pelos nazis logo lhe trouxe a perceção do terror, que viria a testemunhar: uma das primeiras consequências foi a obrigação do pai em “vender” o negócio familiar, logo seguida da proibição da utilização do piano, porque a música estava vedada aos judeus. Mas foi esse talento, que a direcionou para Theresienstadt e não diretamente para Auschwitz, porque os nazis necessitavam de exibir aí a “prova” em como os judeus eram bem tratados.
A orquestra, que Alice então integrou, foi amiúde revelada como fachada propagandística do regime hitleriano para esconder a máquina de extermínio então em funcionamento.
Foi a possibilidade de se reencontrar com a música, que salvou Alice, mesmo depois transferida para Bergen-Belsen, onde foi libertada. Porque, mesmo nos dias de maior desespero procurava encontrar dentro de si algum motivo para manter viva a esperança de salvação.
No documentário Malcolm Clarke entrevista outras duas sobreviventes do Holocausto, mais versáteis em explicarem o que foi a realidade desse horror.
Alice terá superado todas essas experiências ao cultivar a capacidade para preservar a música bem viva dentro de si. E que de bom grado elenca para a câmara de Clarke com os dedos artríticos a ainda dominarem os teclados.
O filho, Raphäel, também sobrevivera à experiência, acompanhando-a nesses anos de privações e medos. Sem pai - que se contaria entre os seis milhões de mortos judeus! - imitá-lo-ia no instrumento de eleição tornando-se concertista até aos 64 anos, quando subitamente morreu. Num clip do Youtube podemos vê-lo a interpretar um belo tema de Rachmaninov.
O que mais impressiona em Alice é a alegria intacta depois de tantos sofrimentos e a explicação está na fruição ininterrupta da música enquanto melhor demonstração do que é o Belo.
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