segunda-feira, abril 01, 2019

(DL) «Ravel» de Jean Echenoz


Para além dos que ganharam o Nobel da Literatura - Le Clézio e Modiano - Jean Echenoz é, de entre os escritores franceses vivos, um dos que mais me agrada ler. Nesse sentido só me lembro de Pascal Quignard como responsável de tão agradável fruição naquilo que nos serve em forma de romance.

No pequeno romance que dedica ao compositor do «Bolero» - apenas cento e vinte oito páginas - Échenoz cria uma espécie de partitura literária com tal sobriedade, que nela não descobrimos uma nota (perdão, uma frase...) a mais.
Na primeira frase temos o incómodo do protagonista em ausentar-se do ninho de Montfort–L’Amaury: “às vezes custa sair do banho (...) que pena sair da água tépida e sabonetada para enfrentar o frio da casa mal aquecida”. Estamos em 1927 e uma amiga, a violinista Hélène Jourdan-Morhange, vem busca-lo para o conduzir a Paris, à estação de Saint-Lazare, donde sairá o comboio para o Havre, onde o espera o paquete «France» de partida para Nova Iorque. Ravel está prestes a iniciar uma visita triunfal ao outro lado do Atlântico. E Echenoz a servir-nos de guia para os últimos dez anos de vida do compositor.
“Inclinado para os carris, Ravel acende um gauloise antes de tirar do bolso do sobretudo o Intransigente, acabado de comprar no quiosque, depois de não encontrar o Populaire, o seu habitual jornal diário”.
Em frases secas Echenoz vai-nos detalhando o que rodeia Ravel, mormente esse navio sobre o qual quase tudo se saberá: quantos anos faltarão para ser vendido a sucateiros japoneses ou quem serão os passageiros nessa viagem transatlântica. Ravel é reconhecido pela grande maioria desses companheiros de viagem: aos 52 anos está no auge da sua glória, partilhando com Stravinsky as parangonas frequentes nos jornais. Mas quem aqui esperaria uma hagiografia bem pode ficar quieto: Echenoz é tão lesto a contar-nos o positivo, quanto as fraquezas de Ravel. E elas acentuar-se-ão, quando a memória começa a escapar-lhe, tornando-se doença o que se julgaria anteriormente simples distração. Um atropelamento em Paris apenas acentua a degradação.
Seguem-se várias tentativas de cura, seja com eletricidade, hipnose, injeções, homeopatia e drogas várias, nenhuma delas com o mínimo sucesso. Nem tão pouco as férias no País Basco natal ou na Suíça. Às tantas ele nem sequer consegue reconhecer as obras em tempos saídas da sua criatividade, indagando sobre quem as terá composto. A cirurgia tentada em desespero de causa resulta no que se sabe. Mas a obra continuou-nos acessível para apreciarmos o que verdadeiramente importa reter de quem passou fugazmente pela vida e há muito desapareceu.

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