terça-feira, abril 09, 2019

(DL) «O Processo Violeta» de Inês Pedrosa (2019)


A questão coloca-se com todos, mas vale a pena repeti-la com o mais recente título de Inês Pedrosa: «para que serve um romance?».
As respostas dadas, nas suas duzentas e trinta páginas, são múltiplas e consequentes. Pode servir, por exemplo, para evocarmos como era o Portugal cavaquista da segunda metade dos anos oitenta, quando o país divergia entre os que nele reencontravam o modelo salazarento anterior à Revolução de Abril - com os preconceitos mesquinhos e as pífias ilusões de ascensão social por uma pequena-burguesia medíocre e analfabeta - e os que não tardariam a andar com um autocolante na lapela a avisarem não terem tido culpa da corrupção e arrogância do absoluto biltre.
Há, igualmente, o questionar dos sentimentos amorosos, da idade em que surgem, ou dos anos aceitáveis para que aconteçam entre um adulto e um adolescente. Dois anos atrás, quando Emmanuel Macron ganhou o acesso ao Eliseu, abundaram reportagens, com um cheirinho a escândalo, a propósito da primeira-dama: Brigitte fora sua professora no liceu e tinha mais vinte e quatro anos que ele.
Espicaçada a coscuvilhice coletiva com tal singularidade, ela depressa se esfumou, porque nada mais era do que isso mesmo: que tinha a ver a função presidencial com quem ele escolhera para partilhar-lhe a conjugalidade?
No tal Portugal no diminutivo, de que Inês Pedrosa se faz ficcional cronista, a relação de uma professora com um aluno mulato dezanove anos mais novo torna-se um acontecimento, que acicata delatores e pidescas criaturas convencidas do seu elevado valimento moral garantindo capas aos abjetos tabloides.
Podemos julgar que esse lado desprezível da arte de ser português já muito terá mudado com a evolução dos valores e dos costumes? É querermo-nos enganar a nós mesmos: basta olhar para as prosas de algumas distorcidas mentes de quem se acolhe nas várias facetas das direitas ideológicas para ali reencontrar o mesmo perfil de censores e prosélitos ao serviço de um puritanismo serôdio, que tarda ser definitivamente amesquinhado.
«O Processo Violeta» cumpre um claro objetivo com elevada distinção: lembrarmo-nos de que, embora virada decididamente para o futuro, no que ele tem de mais desempoeirado e próspero, a nossa sociedade continua a albergar fantasmas de outras eras decididos a assombrarem-nos tanto quanto possível. Assim lhes não falte o ópio religioso ou a iconografia de idas ditaduras.
Acresce a vantagem adicional de se tratar de prosa de talento, que dá prazer descobrir.

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