sexta-feira, abril 19, 2019

(DL) Como se manipulam as multidões


Não tenho a menor simpatia por padres, pastores, imãs, rabinos ou quaisquer outros gurus das mais diversas religiões. Materialista puro e duro, sou ateu dos sete costados e vejo na crença em qualquer transcendência a ilusão de quem sorve acriticamente o tal ópio do povo  de que falava Karl Marx na introdução à «Crítica da Filosofia do Direito de Hegel».
Será, porventura, pouco coerente, que aqui insira o extrato de um romance de Cormac McCarthy em que um pregador é vítima de uma estratégia exemplificativa de como gente sem escrúpulos, o juiz Holden, manobra as gente acéfala e a incita para uma deriva justicialista, potencialmente homicida. Estas duas páginas de «Meridiano de Sangue»  abordam a volubilidade das massas, rapidamente conquistadas por quem lhes conhece a psicologia e as orienta de acordo com as suas intenções.
Nesta altura em que as eleições estão próximas e o eleitorado é bombardeado com notícias falsas ou distorcidas de forma a condicionar-se aos interesses de quem perdeu a governação do país em 2015, este texto pode constituir frutuoso estímulo à reflexão.

Um homem colossal, vestido com um impermeável de oleado, entrara na tenda e tirara o chapéu. Era calvo como um seixo e não possuía vestígios de barba e não tinha sobrancelhas por cima dos olhos nem pestanas nas pálpebras. Media perto de sete pés de altura e quedou-se ali a fumar um charuto, ali mesmo, dentro daquela casa itinerante de Deus, e parecia ter tirado o chapéu somente para sacudir a água da chuva, pois tornou logo a pô-lo.
O reverendo calara-se, interrompendo o sermão por completo. Não se ouvia som algum na tenda. Todos observavam o homem, que ajeitou o chapéu e depois abriu caminho aos empurrões até chegar ao púlpito feito de caixotes em cima do qual se encontrava o reverendo e aí virou-se para encarar a assistência. Tinha um rosto sereno e estranhamente acriançado. Estendeu as mãos, que eram pequenas.
Minhas senhoras e meus senhores, sinto que é meu dever informá-los de que o homem que conduz esta cerimónia é um impostor. Não possui diploma algum de teologia com o selo de uma qualquer instituição reconhecida ou improvisada. É absolutamente desprovido da mais pequena habilitação para exercer as funções que usurpou e limitou-se a memorizar meia dúzia de passagens da Sagrada Escritura com o fito de emprestar aos seus sermões fraudulentos um vago sabor da piedade que despreza. Na verdade, o cavalheiro que aqui têm diante de vós e que se faz passar por sacerdote do Altíssimo, para além de ser completamente analfabeto, é também procurado pelas forças da lei nos estados do Tennessee, Kentucky, Mississipi e Arkansas.
Oh, meu Deus, gritou o reverendo. Mentiras, mentiras! Começou a ler febrilmente pela Bíblia aberta.
Pendem sobre ele muitas e variadas acusações, a mais recente das quais envolve uma garota de onze anos — onze anos, repito — que veio ao seu encontro na maior das canduras e que ele violou, tendo sido apanhado em flagrante delito, ainda vestido com os paramentos do seu Deus.
Um gemido varreu a assistência. Uma senhora tombou de joelhos.
É ele, gritou o reverendo, a soluçar. É ele. O diabo. Ei-lo aqui.
Vamos enforcar este malandro, bradou um rufião mal-encarado na plateia, virando-se para o fundo da sala.
Há três semanas a esta parte, nem tanto, correram com ele de Fort Smith, no Arkansas, por ter tido comércio carnal com uma cabra. Sim, minha senhora, ouviu bem. Uma cabra.
Caramba, eu seja ceguinho se não dou um tiro naquele filho da mãe, exclamou um homem erguendo-se num dos extremos da tenda, e, sacando uma pistola do cano da bota, fez pontaria e disparou.
Ato contínuo, o jovem arrieiro tirou uma faca que trazia escondida na roupa e descoseu uma costura da tenda e saiu para o exterior, para a chuva. O rapaz seguiu-o. De costas curvadas, correram através do lamaçal em direção ao hotel. Já se ouvia tiroteio no interior da tenda e uma dúzia de saídas haviam sido rasgadas nas paredes de lona e as pessoas precipitavam-se para fora, mulheres aos gritos, gente a tropeçar, gente espezinhada na lama. O rapaz e o amigo alcançaram o alpendre do hotel e limparam a água das pálpebras e viraram-se para olhar. Nesse preciso momento, a tenda começou a balouçar e a vergar-se e, qual uma gigantesca medusa ferida, tombou vagarosamente, arrastando pelo chão um emaranhado de paredes de lona esfarrapada e cordas puídas.
O homem calvo já se encontrava junto ao balcão quando eles entraram. Diante dele, sobre a madeira envernizada, viam-se dois chapéus e um montinho de moedas. Ergueu o copo, mas não para eles. O rapaz e o arrieiro aproximaram-se do balcão e pediram whiskeys e o rapaz pousou o dinheiro para pagar mas o taberneiro empurrou a moeda com o polegar e fez um sinal com a cabeça.
O juiz é que paga esta rodada, disse.
Beberam. O arrieiro pousou o copo e olhou para o rapaz ou pareceu olhar, não se conseguia perceber bem para onde é que ele dirigia a vista. O rapaz olhou para o extremo do balcão onde o juiz se encontrava. O balcão era bastante alto, tão alto que nem todos os homens conseguiam pousar-lhe sequer os cotovelos em cima, mas chegava apenas à cintura do juiz e ele estava de pé, com as mãos espalmadas sobre a madeira, ligeiramente inclinado, como que prestes a iniciar um novo discurso. Entretanto, não paravam de entrar pela porta homens a sangrar, cobertos de lama, soltando pragas, e reuniram-se em torno do juiz. Estava já a formar-se uma milícia para ir no encalço do pregador.
Conte-nos lá, juiz, como é que vossemecê descobriu os podres daquele vadio?
Podres? indagou o juiz.
Quando é que vossemecê esteve em Fort Smith?
Fort Smith?
De onde é que conhecia o fulano para saber aquelas histórias todas sobre ele?
Estão a referir-se ao reverendo Green?
Sim, senhor. Deduzo que vossemecê tenha estado em Fort Smith antes de ter vindo para estas bandas.
Nunca estive em Fort Smith em toda a minha vida. E duvido que ele tenha estado.
Eles olharam uns para os outros.
Então em que terra é que vossemecê se cruzou com ele?
Eu nunca tinha posto os olhos naquele homem até hoje. Nem sequer tinha ouvido falar nele.
Ergueu o copo e bebeu.
Fez-se um estranho silêncio na sala. Os homens pareciam efígies de lama. Por fim, alguém começou a rir. Depois outro. Em breve estavam todos a rir à gargalhada. Alguém pagou um copo ao juiz.

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