quarta-feira, julho 01, 2020

(DIM) Chamas na sociedade coreana

Há uns anos a esta parte, que ando a ler os romances e as coletâneas de contos de Haruki Murakami, decidido a não ser apanhado desprevenido quando, confirmando as apostas, ele vier a ser nobelizado.
Que a hipótese pareça remota, têm-mo confirmado essas leituras: apesar de agradáveis não revelam talento bastante para chegar a tal objetivo. Mas, depois de Bob Dylan o ter conseguido quem sou eu para prognóstico tão arriscado?
Em Chamas, filme de Lee Chang-Dong, foi muito elogiado quando se estreou, havendo quem o incluisse na lista dos melhores desse ano. Mas a curiosidade para o ver teve, igualmente, a motivação de aferir como se incumbia da transposição para filme do conto Os Celeiros Incendiados do escritor japonês.
Para quem começa a estar especializado no universo de Murakami reconhecem-se muitas das suas características: o protagonista a apresentar-se como escritor em construção, a importância dos poços ou dos gatos, as corridas atléticas campos fora ou o jazz como música de fundo. Mas, sobretudo, a fronteira muito ténue entre a realidade e um mundo paralelo com ela coincidindo nalguns aspetos essenciais.
O início é, em si, uma gratificante demonstração do que é o cinema: encontrando Jong-soo, seu amigo de infância, a exuberante Haemi mimetiza-se a comer uma tangerina, revelando-lhe como segredo a importância de se convencer efetivamente da sua existência. O espectador, perante um filme, não faz outra coisa senão aceitar a lógica de aceitar-lhe a narrativa como se fosse verdadeira.
Depois, porque vai viajar um par de semanas por África pede ao rapaz, que cuide da sua gata.
Porque por ela logo se apaixonou, Jong-soo tem um baque quando a vai buscar ao aeroporto e vê-a acompanhada de Ben, que conhecera em Nairobi. Está lançada a rivalidade entre os dois homens, embora Jong-soo também sinta fascínio por ele.
Há algo de hitchcockiano na progressiva ambiguidade psicológica num puzzle a tender para a paranoia. E é habilidosamente que Lee Chang-Dong vai agregando pequenos acontecimentos  capazes de irem sugerindo as suspeitas do espectador, que antecipa-lhes a interpretação antes do inocente protagonista lá chegar.
Confirma-se, igualmente, a propensão dos cineastas coreanos para abordarem o tema dos ressentimentos sociais. Parasitas de Hong Sang-Soo constituiu exemplo eloquente no ano transato, mas este filme de Lee Chang-Dong também explora as frustrações da juventude do seu país perante a inacessibilidade do que lhes era prometido pelo capitalismo selvagem.
A precariedade, a insatisfação afetiva e os conflitos familiares constituem razões substantivas para Jong-Soo olhar para Ben com crescente ódio: porque face ao seu velho camião e casa rustica, ele ostenta o Porsche e o apartamento glamouroso, sinais inequívocos de duas formas distintas de olhar para a sociedade, a interpretar e nela atuar.
O filme torna-se então num libelo contra a ordem social estabelecida, justificando a inevitabilidade de reagir de acordo com o final, que justifica o título, quer em português (Em Chamas) quer em inglês (Burning).

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