segunda-feira, julho 06, 2020

(DL) Como ser apolítico num mundo com genocídios?


1. Sempre tenho manifestado grande desconfiança relativamente a George Steiner, cuja erudição costuma ser tão incensada por intelectuais da «escola» reacionária de Pedro Mexia e quejandos. É o próprio consultor de Marcelo para as coisas da cultura (com letra pequena neste caso), quem, numa das suas crónicas, revela que o professor inglês inibiu-se de escrever um ensaio sobre o biólogo e sinólogo Joseph Needham porque, admirando-lhe o brilhantismo, foi a uma conferência em que ele, assumido marxista, denunciava o uso de armas químicas pelo exército norte-americano na guerra da Coreia. O preconceito ideológico impedia Steiner de associar o homem à riquíssima produção ensaística, que lhe dera justa fama.
Compreende-se assim, porque Steiner sempre depreciou outro impenitente marxista - José Saramago - a quem dizia não reconhecer relevância bastante para ter ganho um Nobel. E, pelo contrário, valorizando, sem razão, o Invejoso.
A lógica de secundarizar Steiner por aquilo que pensava acaba por justificar-se a seu respeito: se relativamente a Deus manifestava compreensível desconfiança, rejeitando-lhe a habitual condição antropomórfica atribuída pelos prosélitos dos vários monoteísmos, politicamente dizia-se apolítico, abstencionista, cético, francamente hostil à ideia de igualdade. O que sabemos bem no que isso resulta explicitamente, quando a máscara implícita acaba por cair.
 2. Keane Shum tem a idade da nossa única filha. Nasceu na Austrália, mas a família, de origem chinesa, tinha vivido uns anos em Jacarta, enquanto ali fora tolerada essa emigração antes de Suharto despoletar o criminoso golpe de Estado, que se saldou pela chacina de muitos milhares de comunistas. Daí a preocupação de Keane com o trabalho humanitário trabalhando nas Nações Unidas no Alto Comissariado para os Refugiados no Sudeste Asiático. Um emprego que o fez conhecer em primeira mão o genocídio dos rohingya do Estado de Rakhine no Myanmar, obrigados a procurarem refugio no Bangladesh, na Malásia ou na Indonésia para escaparem à sanha assassina dos militares birmaneses e dos monges budistas, que atrás deles se acoitam.
As esperanças em que a situação se alterasse com a chegada de Aung San Sun Kyi ao poder em 2016 revelaram-se infundadas. E a eleição de Trump apenas dificultou mais o trabalho de Keane e seus companheiros. Não admira que, num texto publicado na revista Granta, conclua: “o tamarindo é sempre amargo, dizem os rohingya. Bem o sabem. Sabem-no melhor do que eu, do que qualquer pessoa, o que é ser-se cidadão de lado nenhum, em risco de se ser descontinuado”.

Sem comentários: