sexta-feira, julho 10, 2020

(DIM) Ai a querida Clementina!


Em 1946 John Ford estava de regresso aos EUA depois de supervisionar os filmes rodados durante a libertação dos campos de concentração nazis e que serviriam de peças de prova contra os criminosos julgados em Nuremberga. O primeiro título que rodou no regresso a Hollywood foi este A Paixão dos Fortes, cujas imagens iniciais - logo após o genérico -, tinham Monument Valley - espaço iconográfico da sua obra -, como cenário.
A passagem pela Europa em ruínas muda-o:  escusa-se à banalização da violência e de alguns dos seus pressupostos. É nesta altura, que sente particularmente ruidoso e incómodo o silêncio da indústria cinematográfica relativamente ao genocídio dos índios.
Tomando por tema personagens lendários da conquista do Oeste - Wyatt Earp, Doc Holliday, sem esquecer o tiroteio de OK Corral - Ford ficciona-os ciente de a sua verdadeira história não se compadecer com a exultação lírica proporcionada pela carga mítica sobre eles produzida. Optando naturalmente por esta última versão...
São muitas as cenas admiráveis de um filme a que gosto de, amiúde, regressar por nele sempre descortinar pormenores esquecidos ou que nunca me haviam chamado a atenção.  Mas recordemos aquela em que Doc Holliday chega à taberna de Tombstone, vindo de indefinida viagem, e todos nele atentam à exceção de Wyatt Earp, que baixa os olhos como se lhe custasse partilhar o protagonismo  até então indiscutível. Depois de espoliado da sua itinerante manada, tornara-se xerife numa cena em que neutralizara um índio bêbedo e de tiro aleatório no exterior de um bar. A partir daí a história gravita em torno de um e de outro até ao ponto de convergência propiciado pela sua transformação num triângulo amoroso com a chegada de Clementine na diligência. Se ela está interessada em Doc, depressa tende a transferir o interesse para Earp.
Entre os dois homens há uma virilidade exacerbada pela rivalidade ou pela cumplicidade. Alguns críticos sugerem uma atração homoerótica, que os westerns só veriam explicitada muitas décadas depois em O Segredo de Brokeback Mountain.
John Ford evoluía na sua estética recorrendo a jogos de sombras e de luz, que muito deviam aos filmes noir então muito frequentes em Hollywood.  Daí que este seja um filme com muitas cenas noturnas e tenha uma intriga próxima do policial com um assassinato - o do irmão mais novo de Wyatte Earp, a investigação sobre quem o terá perpetrado e o correspondente castigo. Com uma constância em Ford: a cólera do protagonista não serve exclusivamente o seu interesse, mas beneficia, sobretudo, toda a comunidade.

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