quarta-feira, julho 29, 2020

(DL) Mulheres insatisfeitas, aprendizes de escritores e um padrinho na Casa Branca


1. Escritora californiana com pouco mais de trinta anos, Emma Cline é considerada uma das mais prometedoras autoras da literatura norte-americana dos anos vindouros. Em Portugal já lhe pudemos ler As Raparigas, romance passado no verão de 1969, quando uma adolescente solitária se deixava fascinar pela descontração de outras raparigas num parque.  É tema muito semelhante ao do conto Los Angeles em que Alice chega à cidade do cinema para aí singrar como atriz. Para se sustentar arranja emprego numa loja de roupa de marca e assegura-se que a mãe lhe paga os cursos de interpretação julgados necessários para conseguir a sua oportunidade. Porque, a falhá-la, não consegue imaginar-se como poderá suportar uma vida tão cinzenta quanto a de mera empregada numa qualquer loja.
Imitando uma colega de trabalho começa a ganhar uns cobres complementares com a venda da sua roupa interior usada, que homens doentios estão dispostos a pagar para que ela lhas entregue em locais públicos onde possa sentir-se protegida. Até ao dia em que um deles a insta a entrar no carro para lhe pagar, a tranca lá dentro, deixando-nos a nós, leitores na ignorância se lhe voltará ou não a abrir a porta.
2 . Han Kang é uma escritora coreana, que suscita entre nós algum entusiasmo, desde que dela se publicaram A Vegetariana e Atos Humanos.
No conto O Fruto da Minha Mulher um narrador conta como começaram a aparecer manchas negras e indolores no corpo da mulher sem que o médico nela detetasse qualquer motivo para as apresentar. Depressa desconfiamos que a jovem, de apenas 29 anos, está acometida de profunda depressão, justificada por viver num sítio que considera apodrecido: no décimo terceiro andar de um prédio rodeado de outros exatamente iguais e com o ar poluído a tornar quase irrespirável o ar.
A situação vai-se agravando e o narrador apenas denota o profundo egoísmo de se sentir lesado na perda do bem estar trazido pelo casamento quatro anos atrás. Um dia, ao regressar a casa, depois de uma viagem de negócios ao estrangeiro, vê acentuado o processo de transformação da mulher: na marquise ela deixou a forma humana e convertera-se numa árvore. Que seca na estação outonal, mas promete reflorescer ao chegar a primavera.
A metáfora é engenhosa, a escrita fluida, embora desconcerte a inserção dos pensamentos da mulher, quando já na nova condição, porque dela só conhecêramos a versão do marido enquanto ainda não se convertera num vegetal.
3. No Manual de Sobrevivência de um Escritor João Tordo lembra o conselho de Aristóteles para os aprendizes de feiticeiro nas artes da escrita: “Se queres escrever bem pensa como um sábio, mas expressa-te como as pessoas comuns.” E o de E.B. White: “Não escrevas sobre o Homem, escreve sobre um homem.” Sobre o qual não se conte tudo, mantendo uma margem de sugerido, porque senão, segundo Voltaire, estaria garantido ser chato.
Interessante, então, a forma como João Tordo sugere o trabalho da escrita: o seu autor é como o oleiro sem forno, que vai moldando laboriosamente o romance, tendo o cuidado de saber que o primeiro molde é inconsistente, uma espécie de plasticina húmida que ainda não servirá.
Ele avisa, igualmente, quão perigoso pode ser esse trabalho, quão difícil será sair dele incólume. Porque exige esforço, deixa um lastro pesado e abre uma clareira em volta de quem nele se arrisca.
4. Un Parrain à la Maison Blanche aparece na altura certa, quando faltam cem dias para a eleição que definirá o futuro de Donald Trump. Fabrizio Calvi, o seu autor, é um jornalista respeitado, que esteve ligado ao «Libération» desde a sua criação. Agora juntou documentos comprovativos em como o pato bravo nova-iorquino conseguiu a sua fortuna ao associar-se à Mafia, que lhe permitiu vencer a concorrência, mormente através do recurso a sindicatos controlados pela associação criminosa. Comportando-se como um Padrinho contou com a ajuda de Roy Cohn, célebre advogado, que fora cão de fila do senador McCarthy na época da caça aos comunistas e sempre defendeu as causas mais consonantes com os interesses da mais extrema direita norte-americana. E ainda hoje conta com réplicas desse tipo de colaboradores como é exemplo esse Roger Stone que, escandalosamente, indultou para não cumprir a pena de prisão decidida judicialmente e por ele enviado de visita a Julian Assange, quando quis da Wikileaks a publicação de documentos pirateados a Hillary Clinton.
Donald Trump na Casa Branca não é apenas uma história de fanatismo ideológico na cúpula do poder norte-americano. É, sobretudo, o crime organizado a aceder a tão perigosa ascensão.

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