1. Há filmes cujas bandas sonoras ficaram no ouvido de sucessivas gerações de espectadores, tão impactantes se revelavam como complemento do fulgor das imagens que complementavam. Max Steiner com E Tudo o Vento Levou, Bernard Herrmann nalguns dos melhores Hitchcock, Georges Delerue com O Desprezo de Godard ou Ennio Morricone no Cinema Paraíso são exemplos maiores dessa ilação. A morte do compositor italiano, aos 91 anos, só nos veio lembrar uma evidência presente nos filmes e séries televisivas, que vamos vendo. Como nos sugestionariam bastante menos se não estivesse, quase sempre impercetivelmente, a acompanhar os enquadramentos dos diretores de fotografia ou o desempenho dos atores!
Nesse sentido o cinema dá razão aos seus primeiros teóricos, os da segunda década do século transato, que consideravam-na paradigma da Arte total. E Morricone incumbiu-se da demonstração de como para o jogo de ator ou a criação da cenografia, o acompanhamento musical assumiu igual relevância.
2. Em Fala com Ela há aquele momento em que Marco instala-se no apartamento de Benigno e atenta no livro pousado na cómoda junto à cama: trata-se de The Hours de Michael Cunningham, cujo enredo mistura espelhos, duplicidade, intertextualidade e transtemporalidade.
Essa cena, nada inocente, é elucidativa quanto à necessidade do cinema de Almodovar alimentar-se desses motivos para criar complexidade narrativa graças aos flashbacks e a histórias que se encaixam umas nas outras como se pertencentes a imponente matrioska.
Abraços Desfeitos, filme de 2008, é um dos que prima por essa densa textura. Como protagonista temos Mateo Blanco, um cineasta que cegara num acidente de carro que, igualmente, vitimara Lena, a musa inspiradora. Graças à ajuda de Diego, filho da sua diretora de produção, inventa argumentos para filmes de série B, sob o pseudónimo de Harry Caine. Numa noite em que uma overdose atira o rapaz para uma cama de hospital, Mateo conta-lhe como esse passado o exultava, alternando episódios anedóticos com o percurso trágico que configura o filme de acordo com os padrões do melodrama de Hollywood, mormente o que Douglas Sirk canonizou de forma superlativa.
No final Mateo afirma: “o importante é sempre acabar o filme, nem que seja às cegas.” E até aí chegar multiplicam-se os estímulos da imaginação entre as recordações e as revelações, com um ror de citações cinéfilas, que confirmam a obra do autor como um exercício de constante autorreflexão.
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