quinta-feira, julho 09, 2020

(DIM) A música como Arte total e a constante autorreflexão de Almodovar


1. Há filmes cujas bandas sonoras ficaram no ouvido de sucessivas gerações de espectadores, tão impactantes se revelavam como complemento do fulgor das imagens que complementavam. Max Steiner com E Tudo o Vento Levou, Bernard Herrmann nalguns dos melhores Hitchcock, Georges Delerue com O Desprezo de Godard ou Ennio Morricone no Cinema Paraíso são exemplos maiores dessa ilação.  A morte do compositor italiano, aos 91 anos, só nos veio lembrar uma evidência presente nos filmes e séries televisivas, que vamos vendo. Como nos sugestionariam bastante menos se não estivesse, quase sempre impercetivelmente, a acompanhar os enquadramentos dos diretores de fotografia ou o desempenho dos atores!
Nesse sentido o cinema dá razão aos seus primeiros teóricos, os da segunda década do século transato, que consideravam-na paradigma da Arte total. E Morricone incumbiu-se da demonstração de como para o jogo de ator ou a criação da cenografia, o acompanhamento musical assumiu igual relevância.
2. Em Fala com Ela há aquele momento em que Marco instala-se no apartamento de Benigno e atenta no livro pousado na cómoda junto à cama: trata-se de The Hours de Michael Cunningham, cujo enredo mistura espelhos, duplicidade, intertextualidade e transtemporalidade.
Essa cena, nada inocente, é elucidativa quanto à necessidade do cinema de Almodovar alimentar-se desses motivos para criar complexidade narrativa graças aos flashbacks e a histórias que se encaixam umas nas outras como se pertencentes a imponente matrioska.
Abraços Desfeitos, filme de 2008, é um dos que prima por essa densa textura. Como protagonista temos Mateo Blanco, um cineasta que cegara num acidente de carro que, igualmente, vitimara Lena, a musa inspiradora. Graças à ajuda de Diego, filho da sua diretora de produção, inventa argumentos para filmes de série B, sob o pseudónimo de Harry Caine. Numa noite em que uma overdose atira o rapaz para uma cama de hospital, Mateo conta-lhe como esse passado o exultava, alternando episódios anedóticos com o percurso trágico que configura o filme de acordo com os padrões do melodrama de Hollywood, mormente o que Douglas Sirk canonizou de forma superlativa.
No final Mateo afirma: “o importante é sempre acabar o filme, nem que seja às cegas.” E até aí chegar multiplicam-se os estímulos da imaginação entre as recordações e as revelações, com um ror de citações cinéfilas, que confirmam a obra do autor como um exercício de constante autorreflexão.

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