terça-feira, julho 21, 2020

(DIM) «Sob o Signo do Capricórnio» de Alfred Hitchcock (1949)


Em 1831 Charles Adare inicia uma nova vida na Austrália onde o tio é o governador. Durante um jantar em casa do principal comerciante local, Sam Flusky, que ali chegara como cadastrado, descobre que a esposa dele é sua prima Henrietta com quem muito brincara na infância.  E não tarda que a descubra mergulhada na loucura e no álcool.
Após a Segunda Guerra Mundial um vento de otimismo varreu o mundo e incluiu os próprios cineastas de Hollywood, que se acreditaram libertos da tirania dos estúdios. Vários realizadores reivindicam a independência assinando projetos próprios: John Ford com The Fugitive (1947), Howard Hawks com Rio Vermelho (1948) ou Capra com Do Céu caiu uma Estrela (1946).
Hitchcock não foi exceção, ansioso que estava de se livrar de David O. Selznick. Por isso, com um amigo inglês, fundou uma nova produtora - a Transatlantic - apostada em criar projetos de prestígio, passíveis de depois serem distribuídos por uma das grandes empresas do ramo. Neste caso a Warner.
O primeiro deveria focalizar-se num melodrama com Ingrid Bergman dado o relacionamento empático que a atriz mantivera com o realizador em A Casa Encantada (1945) e Difamação (1946).
Só que Bergman estava comprometida com diversos contratos teatrais , o que levou Hitchcock a experimentar uma intriga criminosa em tempo real e num único cenário, filmado em planos de dez minutos: A Corda (1948).  Era essa estratégia criativa, que pretendia repetir em Sob o Signo do Capricórnio, ainda que numa escala mais ambiciosa.
Adaptado de um romance da australiana Helen Simpson—The Lovers of Capricorn (1937) - integra-se num conjunto de filmes do realizador, que inclui Pobre Pete! (1929), Rebecca (1940), The Law of Silence (1952) ou A Mulher que viveu duas vezes (1958). Se, ao longo de toda a carreira, o gênio do cineasta emanou principalmente da profunda malícia com que explorou os medos do público e faz com que olhemos para os seus filmes. com um olhar cintilante e um sorriso no rosto, não devemos negligenciar o outro lado dessa ironia: a dor antiga, a misantropia ocultas de um jovem inibido, Hitchcock incapaz de se aproximar de uma mulher antes dos 25 anos ... Com A Casa Encantada e Difamação este filme  forma uma espécie de trilogia sobre a queda e redenção de um ser  e, acima de tudo uma dolorosa declaração de amor a Ingrid Bergman. É claro que Hitchcock identifica-se com o personagem de Michael Wilding que, amante desesperado de Lady Henrietta, faz tudo para ficar constantemente a seu lado, falar-lhe, libertá-la da dor ...
A essência do filme é a lenta abordagem a essa mulher linda, mas infeliz. Wilding, como Hitchcock com a sua câmara, envolve Bergman com  atenções, examina-a sem entendê-la e pacientemente tenta desvendar-lhe o pesado segredo. E é nessa perspetiva que os planos-sequência, herdados de A Corda, encontram razão de ser, para que o espectador possa, por si só, observar esta mulher estranha nesta não menos estranha habitação, e escutá-la. A palavra assume todo o seu peso e serve de catarse à protagonista.
Em muitos aspetos, Sob o Signo do Capricórnio é um conto de fadas. Tal como sucedia em Difamação, Ingrid Bergman está prisioneira numa mansão burguesa e maligna, acossada por uma «madrasta» que a envenena (num filme a possessiva mãe de Claude Rains, neste uma governanta ansiosa por lhe roubar o marido). Num e noutro filme  Bergman reproduz o sonho infantil das meninas desejosas de se verem salvas do dragão ou de um qualquer monstro pelo príncipe encantado.
Perante o suplício da protagonista todos a querem salvar: o primo Charles, Hitchcock e ... o espectador! Todos anseiam recuperar-lhe a luminosidade calorosa, sorridente, feliz. É por isso que, numa sublime metáfora, o herói-cineasta põe o fato atrás do vidro para criar um ecrã através de um efeito de luz inesquecível obrigando a jovem mulher a contemplar a sua intacta beleza, ela que teimava em nunca mais ver o seu reflexo.
Daí que se justifique rendermo-nos a Truffaut, quando escreveu: com a ideia do vidro, fiquei numa vertigem, que me abalou ao ponto de, enquanto não encontrar achado tão feliz nos filmes de Huston, Clément ou Visconti, obstinar-me-ei a colocar Hitchcock num patamar acima, num pelotão dianteiro só por ele constituído.
(adaptação de um texto de Claude Monnier, DVDClassik, 2019)

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