quarta-feira, julho 29, 2020

(DIM) Os contrastes entre o desespero e quem o consegue relativizar


1. Explicando as razões porque dará tanto ênfase à filmografia de Pedro Costa no próximo Motel X - festival de cinema de terror a decorrer no São Jorge em setembro - um dos seus responsáveis apresentou razão pertinente: os personagens dos filmes do realizador são verdadeiros zombies numa sociedade, que os ignora, os marginaliza, só lhes oferecendo um futuro negro, desesperante.
Ossos é disso exemplo óbvio: existia um tal desejo de morte nos personagens, que viviam num permanente pesadelo entre as noites sem fim e as ruas estreitas de um bairro onde o sol quase não entrava. Estreado no Festival de Veneza em 1997 começava com o nascimento de uma criança, que iria sobreviver a várias mortes possíveis: a mãe tentava suicidar-se abrindo o gás do fogão, o pai levava-a ao colo quando ia mendigar nas ruas e por duas vezes tentava vendê-la. Era a miséria dos que viviam nas Fontainhas, bairro da Amadora, que seria demolido dois anos depois. E labirinto onde uma enfermeira tendia a perder-se.
Meio documentário, meio ficção, o filme remetia para as preocupações do neorrealismo italiano, mas ia mais longe ao assumir-se como obra aberta, ausente, consciente de não o poder ser. Houve quem detestasse, houve quem muito elogiasse. Como acontece naquele tipo de propostas, que a ninguém deixa indiferente. E por isso valem pelo que incomodam, fazem refletir ou, de algum modo, fascinam.
2. Foi a cidade onde Petrarca nasceu há quase setecentos anos. E também aquela onde Roberto Benigni rodou boa parte de A Vida é Bela. Arezzo é a cidade medieval da Toscânia onde o ator-realizador decidiu fixar-se, porque nela viu as aves a voarem nos céus e, poeticamente, a deles caírem mulheres. Como sucedeu a Guido, o dono de uma livraria, que se enamorou da bela Dora e com ela casou, apesar da oposição da burguesia local a que ela pertencia. Sobre a habilidade com que iludia o filho a respeito da realidade por ambos partilhada no campo de concentração para que eram levados, todos nos lembramos. Mas a cidade é um espaço privilegiado onde os amores dos protagonistas evoluiam de acordo com as suas características. A praça central com as suas linhas geométricas e contrastes cromáticos. A parte alta com o miradouro junto à Catedral. A mansão estranha onde Guido resgatava Dora montado num cavalo. A cidade ajustou-se a um criador sempre apostado em explorar a elasticidade dos personagens.
Enriquecida pela banda sonora de Morricone, que lhe enfatizava as emoções, A Vida é Bela tinha muito desse estado de espírito toscano em que se relativiza a gravidade das coisas e a ironia tende a conjugar-se com a poesia.

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