Em 1834 Prosper Mérimée era um próspero burguês parisiense, que demoraria mais uma década até escrever e publicar Carmen, depois imortalizada na ópera composta por Bizet em 1875. Titular do cargo de inspetor-geral dos Monumentos Históricos empreendeu naquele ano uma longa viagem pelos Pirenéus Orientais, surpreendendo-se com a paisagem lunar e os muitos vestígios medievais. Norteava-o a ambição de salvar o património nacional, em acelerado risco de se perder, como relata no livro Notes d’un voyage dans le Midi de la France, publicado em 1835. Mas, como segundo ofício, o da literatura, procurava secundar o esforço de alguns amigos próximos - Stendhal e Musset -, que ambicionavam dissociar-se do romantismo, abjurando o seu excessivo sentimentalismo.
Em 11 de novembro estava em Perpignan para assistir à colorida festa em honra de São Martinho, fascinando-o o exotismo ruidoso, os fatos tradicionais e a arquitetura gótica da cidade, que o fizeram sentir-se num desconhecido mundo à parte.
Ao dirigir-se para sul, quase até à fronteira espanhola, as paisagens continuaram a espantá-lo ao mesmo tempo que ia congeminando uma história, que tivesse algo do misticismo alheio ao seu pensamento cartesiano, mas presente no estranho sarcófago em mármore visitado na velha igreja de Arles-sur-Tech. Ali estariam depositadas as relíquias de dois santos e, de uma pedra, que o encimava, brotava uma água miraculosa cuja origem não se conseguia atribuir a uma qualquer nascente ou ribeiro conhecido.
Imaginou então a história de uma estátua de bronze descoberta na região por dois arqueólogos, que a identificavam como representação da deusa romana Vénus. Mas vozes populares atribuiram-lhe poderes maléficos, que logo se pareceram confirmar quando uma dezena de vítimas pereceram depois de vandalizarem importantes peças do património local. Essa intriga, que Mérimée concebeu para a novela La Venus d’Ille até teve algo de aparentado com o que ali viveu por essa altura: a breve estadia na aldeia em causa coincidiu com o assassinato de um conhecido camponês sem que ninguém soubesse dos porquês ou da autoria do crime.
Multiplicando por dez o número de mortos e explicando-os como tratando-se de uma vingança clandestina contra quem punha em causa a sobrevivência dos monumentos por ele tutelados, Mérimée criou uma lenda moderna, logo acrescentada às muitas de que essa região era tão fértil.
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