terça-feira, setembro 01, 2020

(DIM) O Rio, Emir Baigazin, 2018


Deem-me a escolher entre dois filmes, um todo vistoso, com engenhosos efeitos especiais e demais artifícios de Hollywood, e outro, mesmo que lento, oriundo de quase desconhecidas cinematografias, e nenhuma dúvida me fica: é pelo último que opto. Porque, enquanto o primeiro será igual a tantos outros tipo chiclete, já vistos e revistos, o segundo promete tornar-se memorável à conta da originalidade das suas histórias e formas de as abordar. Facilmente entendemos que a escolha situa-se entre o artificialismo de um «produto» e a singularidade de uma obra artística digna de ser, enquanto tal, apreciada.
Demonstra-o este filme cazaque, que se estreou no festival de Veneza de 2018 e ganhou o Lisbon & Sintra Film Festival do mesmo ano. Última parte de uma trilogia, que já contara com Lições de Harmonia em 2014 e The Wounded Angel em 2016, prossegue-lhes o objetivo do realizador em revelar as vidas difíceis das populações rurais do seu país, afastadas dos confortos citadinos e como a eles reagem, quando não indo Maomé à montanha é esta a tomar a iniciativa de ir ao seu encontro.
Começamos por conhecer cinco filhos de um casal em que o pai amiúde se ausenta, incumbindo o primogénito, Aslan, de controlar as tarefas dos irmãos na pequena horta ou na confeção artesanal de tijolos. Visivelmente pai-patrão, que não hesita em usar o chicote, quando sente justificado o desagrado com o trabalho por eles executado, sente-se concentracionário um espaço poeirento em que a vestimenta dos rapazes acompanha esteticamente a monocromia circundante.
Baigazin revela outras preocupações estéticas, que revelam uma ambição depois confirmada  durante as quase duas horas de duração do filme: a movimentação dos miúdos em frente à câmara segue trajetórias geométricas, que obedecem a uma coreografia rigorosa.
Num dia em que o controle paterno se atenua Aslan leva os irmãos até ao rio próximo, até então desconhecido. O azul vem romper essa cor única até então dominante e as sucessivas visitas a esse espaço de liberdade e brincadeira nunca se saldam pela noção da largura dessas águas sentidas como perigosas, porque fluem numa corrente forte, capaz de vencer-lhes as braçadas e levá-los para fora de campo, aonde desconhecemos como a conseguem vencer.
Se esse além já põe em causa a intenção confessada pelo pai em mantê-los distantes das «mentiras» lá de fora, ainda mais se potencia quando lhes aparece um primo vindo da cidade. As roupas coloridas, a irreverência assumida nos atos e a fascinante tabket, donde irrompem os sons da música eletrónica ou as cores dos videojogos, porão em causa o precário equilíbrio até então estabelecido, com a ditadura paterna suportada com alguma resistência, mas melhor aceite se intermediada por Aslan arvorado na função de capataz.
A harmonia fraterna começa a fissurar-se nessa chegada de Kanat, uma espécie de Prometeu disposto a desafiar um Zeus todo-poderoso. Os valores da civilização ocidental, de que se revela representante, suscitam desequilíbrios e instabilidades, manifestadas através da inveja e da cobiça. A tensão cresce, tanto mais que numa ida conjunta à beira-rio - a primeira vez em que se vislumbra a outra margem e o quão próxima está! - Kanat desaparece.
Ter-se-á afogado? Todos os irmãos irão reagir a seu modo, àquilo que lhes parece ter sido uma tragédia. Embora Aslan - aquele cuja autoridade mais ficara diretamente em causa com a chegada do intruso! - tivesse ordenado a queima das roupas como se quisesse apagar os vestígios de um crime de que o adivinhamos inocente.
O final esclarece-nos as dúvidas quanto ao destino de Kanat: afinal o seu voluntário desaparecimento durante alguns dias pretendera acrescentar mais alguma inquietação num espaço por ele decididamente perturbado. Ao despedir-se dos primos para nos confrontar com o final em aberto desafia-nos a conjeturar quais as consequências da sua passagem por ali. Quase por certo as coisas não tenderão a continuar a ser como até ali...

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