sexta-feira, agosto 21, 2020

(DIM) Os Anos 68, Don Kent - 1ª parte


Era um miúdo com doze anos acabados de fazer, quando tive memorável epifania. Nos anos anteriores o meu pai acostumara a família à descoberta do país seguindo as rotas, que preparara nas semanas anteriores com o mapa aberto na mesa da cozinha e bloco de apontamentos ao lado. Durante oito a dez dias lá andávamos por estradas, mais ou menos rudimentares, já que as autoestradas só viriam muito depois.
Na tarde em causa estávamos abancados num café do Porto, quando a minha irmã permitiu-me folhear a Paris Match acabada de comprar. Na capa, e em várias páginas interiores, as imagens das barricadas francesas nas lutas do maio anterior com a decorrente repressão policial. Noutra reportagem, mais adiante, os não menos impressionantes testemunhos fotográficos do assassinato de Bob Kennedy em Los Angeles. No editorial explicava-se que a revista suspendera a publicação durante algumas semanas e voltava então ao contacto com os leitores mediante aquele volumoso número especial.
Nesse verão de 1968 perdi a inocência infantil de quem só se contentava com as brincadeiras dos rapazes dessa idade e passei a olhar com outra atenção para os acontecimentos políticos, mesmo que cerceados pelo afã dos censores. Dias depois, já regressáramos a casa, quando Salazar caiu da abençoada cadeira no Forte da Barra e atentei na expectativa com que o meu pai aguardou por quem lhe sucederia.
Quando o «venerando» almirante disse o nome de Marcelo Caetano houve uma reação esperançosa: em relação aos outros nomes sussurrados  esse parecia ser o que poderia trazer alguma mudança para melhor. Quiçá livrando o meu primo ou eu próprio de irmos parar às savanas africanas. Porque, depois de ter sido um dos mais fiéis seguidores do moribundo, mostrara sinais de algo querer alterar quando os estudantes se tinham insurgido seis anos antes. Essa fora informação transmitida pelo padre Sobral, outro nome fundamental nas transformações, que em mim se aceleravam. Como também para elas contribuíram o Vítor ou o Carlos que, por esses dias, davam-me a conhecer as  músicas dos Doors ou dos que tinham atuado no ano anterior no festival de Monterrey.
Vivia-se em ditadura, mas era também num tempo de exaltantes descobertas. Foi para recuperar a sua memória, que me dispus a passar três horas a ver Les Années 68 de Don Kent, que se debruça sobre os anos decorridos entre 1964 e 1975 e recupera muitas imagens inéditas de quanto então decorreu. Quando cheguei ao fim desse longo documentário senti que, alterando o título de um romance de Irene Lisboa, houve boas razões para voltar a esse atrás. Porque nele se alicerçou muito daquilo em que depois me tornei...

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