domingo, agosto 30, 2020

(EQ) Imitamos os netos, mas sentimo-nos desafinados...


Imagino-nos perante o quadro que Brueghel pintou em 1560 retratando duzentas e trinta crianças ocupadas em oitenta e três brincadeiras e espalhadas por uma praça e duas ruas perpendicularmente entrecruzadas numa aldeia do seu tempo. E avaliamos as diferenças de perceção se o víssemos ao lado das nossas netas numa das muitas salas do Museu Kunsthistorisches em Viena.
Quase por certo elas apostariam que, para captar aquela perspetiva, o pintor utilizara um drone, pois só de cima se afigura possível tudo aquilo ver. Nós nem de tal nos lembraríamos tão natural é aceitarmos capacidade dos artistas quinhentistas em contornarem a divergência entre o que viam de facto e o que suporiam ser o olhar de uma qualquer ave que os sobrevoasse.
Não incentivássemos as miúdas a permanecerem mais alguns instantes em frente ao quadro, e procurassem detetar o que estariam a fazer os seus personagens, quase por certo debandariam para outras obras ali ao lado. As novas gerações são tão permanentemente estimuladas por efémeros influxos de informação, que não se deixam prender pelo que se lhes afigura como excessivos detalhes. Os focos de atenção cingem-se a escassos segundos e logo derivam para outros, que lhes deem mais grata compensação.
Se aceitassem o desafio, pouco compreenderiam daquilo em que as personagens da sua idade estariam ocupadas. Tudo se resumiria a enorme confusão, apesar de partilharem com o autor a naturalidade neerlandesa, razão para culturalmente se sentirem mais próximas da sua proposta.
Outra seria a nossa interpretação, porque jogámos ao eixo, conduzimos um aro com uma vara de arame, subimos às árvores, fizemos piruetas em postes horizontais, repetimos infinitas vezes o mamã dá licença para sabermos quantos passos avançaríamos e tantas outras brincadeiras, que Brueghel reproduziu fazendo jus à formação em pintor miniaturista.
Paradoxal conclusão poderíamos retirar da experiência: em muitas coisas estamos mais próximos dos antepassados de há quase quinhentos anos que das gerações subsequentes à nossa. As novas tecnologias alteraram a identidade dos humanos de hoje, tornando-nos obsoletos, cientes de pouco estar ao nosso alcance para o evitarmos.
Podemos passar horas à frente dos computadores, acompanhando as últimas novidades de hard e de software ou dotarmo-nos dos novos telemóveis topos de gama já preparados para a quinta geração. Forçosa a sensação de contarmos com unhas inábeis para tão exigentes instrumentos.
Imitamos os netos, mas sentimo-nos desafinados...

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