terça-feira, agosto 18, 2020

(DL) Os Vivos e os Outros, José Eduardo Agualusa


Coincidência feliz a de ler este oitavo romance de José Eduardo Agualusa nesta circunstância que é ainda de semiconfinamento por causa de um vírus, no qual houve quem visse potencial apocalítico.  Porque durante sete dias - tantos quantos a Bíblia considerou necessários para Deus cumprir o seu desígnio criativo - vários escritores africanos ficam retidos na pequena ilha de Moçambique, ao largo de Nampula, sem acesso a internet, nem telefones, sequer de ligação ao continente por estranho temporal, onde os mais afoitos conseguem ouvir as vozes dos espíritos.

Às tantas volvi a uma filme de 1959, A Hora Final, em que diversos personagens interpretados por Gregory Peck, Ava Gardner ou Fred Astaire esperavam na Austrália pelas radiações mortíferas resultantes de um fim do mundo causado por bombas atómicas trocadas entre as grandes potências. Porque às tantas é isso que sucede aos escritores moçambicanos, angolanos ou nigerianos, que Moira - conhecida no romance anterior do autor, A Sociedade dos Sonhadores Involuntários - conseguira atrair para onde fixara residência e onde se encontrava no fim da gravidez do primeiro filho gerado com Daniel Benchemol, um alter ego  de Agualusa, também ele conhecido desse romance anterior e de um outro, publicado ainda mais para trás: A Teoria Geral do Conhecimento.
Os escritores africanos detestam-se ver associados ao realismo mágico latino-americano, mas é inevitável a associação, quando vemos a palavra a ter a capacidade para criar a realidade, com os personagens a libertarem-se da prisão dos livros em que tinham sido vertidos para virem assombrar os seus autores. Ou outros fantasmas virem sugerir que o tempo deixou de ter fluência contínua, misturando-se passados com o presente, quiçá com o próprio futuro.
O Festival Literário depressa perde a importância inicial, porque mais interessantes são as conversas dos personagens no terraço onde se encontram para enfrentar o calor infernal e discutir o que poderá estar a suceder, que nem mesmo se torna mais compreensível depois de se saber da explosão de uma bomba nuclear em Jerusalém.
A normalidade acaba por se reencontrar, quando o bebé de Daniel e Moira já nasceu no meio da tormenta, amores breves se descobriram e as comunicações com o mundo se reencetaram. Há ainda um estranho livro entregue a Daniel para demonstrar a estranheza da semana acabada de viver mas, reduzindo-o a cinzas, ele melhor vinca a certeza de estar preparado para retomar a anterior normalidade.

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