segunda-feira, agosto 24, 2020

(DIM) Os Anos 68, Don Kent - 3ª parte


Se Aureliano Buendia recordaria muitos anos depois aquela tarde em que o pai o levara a ver o gelo, eu que de pelotão de fuzilamento potencial só tenho, por ora, a ameaça do malfadado vírus ou mais quatro anos de Trump na Casa Branca - hipóteses de cuja viabilidade nem quero ouvir falar! - olho para o dia inicial inteiro e limpo do 25 de abril como tendo chegado atrasado a uma dinâmica que, noutras latitudes, estava a desvanecer-se. Não é que as sementes para as mudanças futuras não estivessem espalhadas por fecundos solos - ou que a definitiva derrota dos EUA no Vietname ainda tivesse de aguardar para o abril do ano seguinte! - mas as pedras das calçadas tinham voltado a tapar as praias parisienses, a primavera de Praga voltara a dar lugar ao outonal cinzentismo e, nas prisões alemãs, já se preparavam os «suicídios» de Andreas Baader e Ulrike Meinhof.
Nixon saíra de cena apodado de “trapaceiro”, mas Ronald Reagan emergira como ídolo da nova direita, quando mandara reprimir violentamente os estudantes da universidade de Berkeley. Por outro lado o entusiasmo pelos megafestivais - cujo ponto alto fora Woodstock em agosto de 1969! -, declinara quando, quatro meses depois, os Hell’s Angels provocaram uma tremenda batalha campal durante a atuação dos Rolling Stones, em Altamont. Os motoqueiros prenunciavam o tipo de infiltrações, que as diversas extremas-direitas protagonizariam nas claques de futebol e noutras acéfalas organizações de massas nas décadas seguintes.
Porque o poder cuidava de extremar a violência com que agia contra quem se lhe opunha - o episódio da chacina de My Lai assim o demonstrou, logo replicado pelos comandos portugueses em Wiryamu (Moçambique) - logo houve quem, à esquerda, espelhasse essa atitude: a Fração Armada Vermelha na Alemanha, as Brigadas Vermelhas em Itália, ou, mais tarde, a Action Directe em França, foram respostas inconsequentes, porque isoladas das classes em nome das quais perpetrariam as suas ações. Ainda assim, se as direitas empolaram a morte de Aldo Moro, operaram cirúrgico esquecimento sobre o massacre na Piazza Fontana em Milão - verdadeiro ato de terrorismo de Estado, que explica a futura lógica do «olho por olho» da extrema-esquerda italiana.
Quando da Revolução de Abril também já se tinham desfeito as dúvidas quanto à possibilidade do socialismo vingar através das eleições: naquele que fora o mais civilista país latino-americano e onde as instituições democráticas se pensavam mais consolidadas, o breve período de governação de Salvador Allende - entre novembro de 1970 e o 11 de setembro de 1973 - tinham dissipado as dúvidas: quando se tratava de conservar as regalias, as classes dominantes não hesitariam em recorrer aos golpes de Estado, às torturas e aos assassinatos, para impedirem a prometida Revolução.
Olhando para essa década entre 1964 e 1975 conclui-se não ter acontecido nenhuma revolução - muito menos a que na China se quis considerar como cultural! Mas, de alguma forma, todas as transformações desde então verificadas nos valores, que mobilizaram milhões de feministas, defensores dos direitos LGBT e os ecologistas, surgiram das tais sementes lançadas nesse período. E que continuam a ganhar maior relevância com a ambição de viver-se num planeta sustentável onde a distribuição das riquezas e a afirmação das liberdades se exponenciem.

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