domingo, agosto 09, 2020

(DIM) Carquejeiras - As Escravas do Porto


A consolidação da ditadura salazarista constituiu o dobre de finados sobre um Porto pujante e ativo que tinha uma palavra a dizer sobre a política nacional. Ali foi derrotado o miguelismo absolutista perante as tropas liberais e teve o corrupto Costa Cabral quem o contestasse. No 31 de janeiro de 1891 procurou-se implantar a República dezanove anos antes de se tornar vitoriosa em Lisboa. E em 1927 ali aconteceria uma das primeiras e das mais consistentes tentativas de derrotar o regime militar instituído em 28 de maio do ano anterior.
O Estado Novo imporia uma centralização, que nunca mais se infletiria por muito que houvesse quem apostasse numa versão tacanha de parolismo pela voz do autarca Rui Rio, ou no pérfido insulto aos mouros do sul, para perder essa subalternidade quase centenária.
Foi já na imposição dessa perspetiva de Lisboa como capital do Império, que Salazar nada quis saber da pobreza extrema então vivida pela população portuense. Nessa época os meus avós paternos mudaram-se da margem sul do Douro para a sua gémea do Tejo, arranjando casa na Caparica onde havia promessa de melhor futuro para os rebentos, que se iam sucedendo na barriga fértil da jovem migrante. Talvez tenha sido essa decisão a livrá-la do triste destino das pobres mulheres  que, entre 1928 e 1951, ganharam escassos centavos para carregarem às costas os pesados molhos de carqueja numa ladeira com 21% de inclinação, que os padeiros necessitavam para cozerem o pão ou as donas-de-casa para acenderem os fogareiros das cozinhas.
Vestidas de farrapos e, muitas vezes, carregando gravidezes até ao desenlace, suscitavam a compaixão dos que as viam no esforço de escravas e não tinham com que minguar-lhes as dores.
Arminda Sousa Deusdado assinou um documentário de feitura convencional em que se entrevista quem ainda conheceu essas mulheres e tem pugnado pela sua memória homenageando-as com uma escultura naturalista, capaz de perdurar uma ignomínia social, que durou tempo a mais. Porque tivesse existido durante um só dia e já teria sido inaceitável. Quanto mais vinte e três anos!
O documentário serve para lembrar que o fascismo luso comportou muitos crimes, que não se cingiram aos praticados no Tarrafal, no Aljube ou em Caxias. A miséria imposta aos mais pobres, enquanto o ditador acumulava ouro no Banco de Portugal, também conta. Olá se conta!

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