segunda-feira, agosto 17, 2020

(DL) O Nicho da Vergonha, Ismail Kadaré


Em 1975, quando Ismail Kadaré escreveu este romance, a Albânia de Enver Hoxha passava por grandes purgas como reflexo do que passava com a Revolução Cultural Chinesa e a aparente supremacia daqueles que foram designados como Bando dos Quatro.
O clima de paranoia cresceu de tal forma, que líderes emergiam no topo de um dia para o outro e logo eram apeados, caídos em desgraça. Alguns deles viriam a ser os protagonistas da viragem pró-capitalista subsequente à morte do carismático líder do regime em 1985.
Kadaré criou uma metáfora política, ilustrativa dos mecanismos da opressão, do exercício da tirania. Para tal situa a história em 1822 na capital o Império Otomano em cuja praça central existiria um nicho da vergonha, sucessivamente ocupado pelas cabeças decepadas dos derrotados das revoltas contra o sultão ou dos grandes dignitários da corte caídos em desgraça. Quando o romance se inicia aguarda-se pela chegada da cabeça de Ali Pachá de Tepelena, o octogenário ruivo, que pretendera devolver à Albânia a ansiada independência.
Várias personagens vão elucidando as vicissitudes da intriga numa estrutura com o seu quê de coral: o vigilante do nicho, incumbido da boa manutenção das cabeças expostas, o médico que as inspeciona regularmente, o rebelde albanês e a sua jovem esposa, o general que o derrota, mas logo cai em desgraça pelos riscos decorrentes da sua excessiva popularidade. Ou ainda Tendj Hata que, numa carroça preta, transporta as cabeças do sítio onde foram decepadas até à capital não enjeitando ganhar uns cobres pelo caminho, organizando clandestinas mostras do macabro despojo aos aldeões tão ansiosos de terem entretenimento em algo que os distraia das repetitivas rotinas.
Depressa se conclui que a sucessão de cabeças no nicho da vergonha é o expediente mais eficaz para que o império mantenha a periclitante unidade. Mas Kadaré não deixa de lançar uma piscadela de olho ao leitor ao encher a praça central com muitos turistas de visita à capital do Império e encontrando naquela exposição um bom motivo para animar a viagem. Algo muito mais apropriado para o século XX do que para o primeiro quartel do século anterior.
Relacionando-se com outros romances de que resgata personagens ou instituições, surge em O Nicho da Vergonha o inquietante Palácio dos Sonhos, que deu título a outra obra do autor em 1981, onde centenas de analistas, apoiados numa organização burocrata irrepreensível, recolhem e interpretam os sonhos vindos de súbditos de todo o Império, de cujo conteúdo dependendo a tranquilidade, se não mesmo segurança, dos que nele habitam. Uma estrutura pidesca no seu esplendor...

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