sábado, agosto 22, 2020

(DIM) Os Anos 68, Don Kent - 2ª parte


Tinha oito anos quando três ativistas, que andavam pelo Mississípi a mobilizar os negros para se recensearem, foram mortos na pequena vila de Philadelphia. O caso passou-me completamente despercebido e só o soube duas dúzias de anos depois, quando Alan Parker abordou-o num dos seus mais memoráveis filmes: Mississipi em Chamas. Mas, para muitos norte-americanos crescia a evidência de estar em curso uma prodigiosa hipocrisia procurando-se levar a «Democracia» à Indochina, quando a América era palco de tantas iniquidades, todas elas decorrentes do país ter-se construído nos alicerces do genocídio dos índios e da escravatura dos africanos trazidos do outro lado do oceano pelos barcos dos negreiros. A América dos Sonhos era falácia, que perduraria, mas era de efetivo pesadelo para quem nela vivia.
No Brasil a CIA promovia um dos primeiros golpes resultantes da sua Operação Condor, que multiplicaria ditadores  e o consequente rasto de assassinatos e torturas por toda a América Latina nos anos seguintes como resposta à consolidação do regime de Fidel de Castro em Cuba. Dele emergira a personalidade carismática de Che Guevara que, apesar de muito vilipendiado por quem lhe odeia a herança, continua a ser visto como símbolo intemporal da luta dos excluídos contra os seus opressores. Frei Betto, grande figura moral e intelectual do subcontinente, continua a considera-lo o São Francisco da política.
Por essa altura os estudantes de grandes cidades, geograficamente dispersas, levantam-se contra as injustiças que execram e desafiam polícias e tropas de choque. Berlim e Tóquio assistem a cenas que o Maio de 68 francês só ampliará em dimensão e ambição. Não sem antes acontecer o Summer of Love em São Francisco, no mesmo ano em que Bertrand Russell e Jean-Paul Sartre lideraram um Tribunal Internacional em que condenaram os Estados Unidos pelos crimes cometidos no Vietname. As manifestações anti-imperialistas multiplicavam-se por todo o mundo levando Lyndon Johnson a desistir de um novo mandato presidencial tão enredada estava uma guerra para onde se vertiam fluxos crescentes de soldados e de material de guerra.
No final de janeiro de 1968 os norte vietnamitas e os vietcongues lançaram a grande ofensiva do Tet, que acossou os norte-americanos e lhes fez sentir a forte probabilidade de humilhante derrota. Novo reforço de meios humanos e militares infletiu o rumo dos acontecimentos, mas, apesar de mal sucedidos nessa iniciativa, os vietnamitas conseguiram uma indesmentida vitória psicológica. Tudo apontava para que, mesmo perdida a batalha, o resultado da guerra tenderia a favorecê-los. Para quem comandava os EUA os escrúpulos iam-se minguando e entrava-se na lógica do vale tudo. A mesma decidida pelos suprematistas brancos, que mandaram matar Martin Luther King em 4 abril de 1968, incapazes de compreenderem o quanto a luta pelos Direitos Civis ainda mais se aceleraria à conta do mártir de Memphis.
Três semanas antes desse crime, em 15 de março, o Le Monde publicava um texto notável de Pierre Viansson-Ponté, que prenunciava algo de imprevisível perante uma França entediada. Os acontecimentos de maio que, no texto anterior, considerei como fundamentais para me fazerem tal qual sou, não constituíram nenhuma revolução, porque não chegaram a alterar a ordem social estabelecida, mas foi um violento terramoto cujas réplicas estiveram na origem de muitas das mudanças de valores, costumes e de conceções ideológicas ainda hoje pertinentes na forma como galvanizam multidões.
Quando Bob Kennedy foi morto em 6 de junho não sobravam dúvidas quanto ao que estava a acontecer: a lógica imperialista norte-americana, aceleraria a lógica assassina nos anos seguintes. Interna e externamente.

Sem comentários: