domingo, janeiro 06, 2019

(AV) Vaidade, tudo é vaidade


Num dos seus programas sobre o significado da Arte, o músico catalão Ramon Gener debruça-se sobre a vaidade como sentimento ilustrativo de muitas obras ao longo da História humana, começando por revisitar a Antiguidade Clássica.
Como outros mitos gregos, o de Narciso constitui estória de moral exemplar: o belo e orgulhoso habitante de Tépias era tão autossuficiente, que quebrava corações a torto e a direito, porque a nenhum deles se queria render. Eco, por exemplo, fora ninfa, que sofrera tanto com o seu desamor, que perdera o belo corpo e se vira reduzida à suplicante voz. Razão para que Nemesis, deusa da vingança, agisse de forma punitiva: direcionando os passos do vaidoso até à beira de um lago deixou-o encantar-se tão perdidamente pelo reflexo de si próprio, que as águas o engoliram, quando se inclinou para beijar-se nos lábios.
O mito daria o nome às belas flores amarelas, que enchem os campos primaveris, mas veem estioladas as flores ao fim de vinte dias. Metáfora eloquente de como a beleza é efémera e tem a morte como incontornável desiderato. É a fórmula inscrita no bíblico Eclesiastes sobre o quão vã é a vaidade: “vanitas vanitatum et omnia vanitas”.
Vanitas era também o nome, que se davam às pinturas de naturezas-mortas, que mostravam frutos e outros alimentos vistosos, mas que o tempo depressa se incumbiria de degradar. Para lembrar a inevitabilidade da morte, muitas dessas obras faziam-se acompanhar de sinistras caveiras (como no quadro de Paul Cézanne acima ilustrado)
Para os poderosos, porém, pouco interessava essa sentença: conquanto se vissem retratados de uma forma que sugestionasse os amigos, e sobretudo os inimigos, quanto ao poder de que se acreditavam imbuídos, era quanto lhes bastava. Daí que a arte ocidental tenha visto os seus criadores dedicarem-se tão continuamente ao tema. Que melhor forma de satisfazer os egos dos poderosos, e seus generosos mecenas, do que representá-los de acordo com o aparato em que se pretendiam enaltecer?
Versalhes constitui um exemplo maior de arquitetura destinada a promover a conceção identitária de Luís XIV com o próprio Estado. E os próprios artistas não enjeitavam a oportunidade de se incluírem nas telas, seja em segundo plano como Velasquez nas «Meninas», ou como Albrecht Dúrer num dos autorretratos em que se equacionou imortalizado por se dar a ver como sósia de Jesus Cristo.
Afinal terá sido o escritor Ernesto Sábato a situar a vaidade no devido contexto ao entender quão fútil é alguém preocupar-se com o que dele pensem os que lhe sobrevivam muito para além da morte. Embora se conclua haver algum condão de alcance da imortalidade, desde que se produza obra  intemporal no apreço de sucessivas gerações.

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