Em «O Homem que gostava de cães» o cubano Leonardo Padura leva o personagem Ramon Mercader a assistir a uma das sessões dos célebres processos de Moscovo, com que Estaline garantia a purga de todos os antigos companheiros dos tempos da Revolução de 1917 por ele tidos como demasiado incómodos para concretizar o seu poder absoluto.
O réu dessa sessão de março de 1938 é Guenrikh Yagoda, que criara os gulags e muitos dos métodos de interrogatório de quantos o haviam precedido naquele tribunal, mormente arrancando-lhes confissões à custa da promessa não cumprida de lhes poupar os familiares mais queridos. E o procurador, que se encarniça contra os condenados à morte, mais não é do que Andrey Vichinski que fora menchevique e se reciclara como empenhado defensor do suposto «pai dos povos».
O que os mentores do futuro assassino de Trotski lhe pretendem demonstrar é, por um lado, o quanto arrisca o pescoço se falhar a missão no México, mas também convencê-lo dos seus pérfidos argumentos contra os inimigos do regime.
Se esta parte do romance fosse atribuída a Simon Sebag Montefiore, que escreveu uma biografia de Estaline tão benquista por quem mais interessa denegrir o comunismo, e aquele seu líder em particular - a tal ponto que o «Expresso» a distribuiu há uns anos em sete ou oito pequenos livros! - arrumaria a abordagem no rol do maniqueísmo primário com que algum Ocidente olha para o passado soviético da Rússia. O perturbador é ser Padura a reproduzi-lo, por muito que o adivinhe cético em relação ao castrismo em que tem vivido toda a sua vida.
Sobre Estaline mantenho uma ambivalência, em que lhe reconheço os crimes, mas os explico em parte pelo isolamento, e permanente tentativa de sabotagem, que a Revolução Bolchevique conheceu desde início pervertendo-lhe as intenções iniciais. Daí que rejeite que a história soviética tenha, desde início, cumprido os desígnios da ideologia marxista, cuja passagem à prática continua por se verificar, tanto mais que o seu inspirador a predissera como corolário natural de um capitalismo esgotado na sua capacidade de se reinventar. E até dou razão ao inimigo, que mandou assassinar no México, quando este defendia como única possibilidade de sucesso do bolchevismo a imediata expansão dos seus ideais aos países mais desenvolvidos desse primeiro quartel do século XX.
O afã capitalista em apagar o farol, que tenderia a iluminar o caminho aos explorados do resto da Europa e à América do Norte só podia estimular a paranoia de Estaline, depressa imbuído do medo de contar com inimigos a todas as esquinas.
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