Durante muito tempo alimentei o receio de vir a perder a vista em fase bastante precoce da longa existência, replicando o exemplo de Jorge Luís Borges, que se socorria da prestável Maria Kodama para vencer a cegueira. Reflexo de ter usado óculos, quando andava nos vinte anos e a realidade começou a parecer-me difusa, sem a nitidez de nela interpretar os detalhes.
Para um cinéfilo inveterado e voraz leitor a perda das capacidades oculares constituiria uma assombração, que a desmentida evolução do problema tenderia a sossegar.
A evocação de tal inquietação regressou-me ao rever o documentário, que Marie Mandy rodou em 2004 suportado num conjunto de interrogações prévias: que imagens conservamos na cabeça, quando se deixa de ver? Como sobreviver à perda da luz do dia, das referências, das formas? E o curioso nos vários testemunhos ouvidos pela realizadora - desde o professor universitário cego desde vinte anos atrás, ao psicólogo apanhado no lento processo de degenerescência da visão; da escultora, que se habituou a cingir-se à criação através do que lhe dizem as mãos até ao atleta, que bate records pessoais como forma de se superar, culimando na miúda sem nunca ter tido qualquer contacto com o mundo visual - é que não se vê a realidade apenas com os olhos, porque muito nos dizem os sons ou os odores. Contar só com eles poderá dar azo a uma realidade alternativa, mas não deixa de ser uma das muitas variantes propiciadas pelo conjunto dos sentidos para aferir o que nos rodeia. E esse é o veredito de hora e meia de imagens, que nos identificam com os modelos dos cegos e amblíopes para se enquadrarem num mundo pouco acomodado às suas específicas necessidades.
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