Deixei muito cedo a casa dos meus pais. Afastei-me da cidade natal, do futuro que me estava preparado. Parti às cegas, com um simples bilhete de ida. (…) Experimentei a Liberdade, que não se limita a ser uma mera lista de direitos a usufruir, mas é igualmente perigosa.”
Pela primeira vez no seu fértil percurso de romancista Erri De Luca analisa em 37 sequências as grandes experiências, que fizeram dele quem é.
A infância napolitana, a descoberta da natureza através de caminhadas na ilha de Ischia com outros alunos do liceu, a militância política nos «anos de chumbo», que sacudiram a Itália, o exílio em Paris, a aprendizagem da fraternidade entre trabalhadores das fábricas e dos estaleiros são captados com a precisão e as nuances de um homem que conhece, melhor do que ninguém, a importância da língua. Mas as páginas mais comoventes são as dedicadas à família e redigidas na solidão presente: a fidelidade do pai a esse filho «estroina», a figura magnifica da mãe. É, pois, um livro que esclarece a obra e o percurso de um dos escritores mais singulares dos nossos dias.
Embora se tente descrever como um antigo guerreiro entregue à serenidade dos seus anos crepusculares não podemos ignorar o processo judicial a que, ainda há pouco tempo, foi sujeito sob a acusação de apelo a ato terrorista por se opor à passagem de uma linha ferroviária no vale onde vive. Por isso ele continua a considerar “insuficiente o mero sentimento de indignação.” Porque é efémero e não se traduz em algo de duradouro.
Desiludido das grandes causas, considera que elas já não existem atualmente: “ Estamos reduzidos á causa elementar da legítima defesa da nossa saúde, da Terra, do ar que respiramos, da água que bebemos e de uma comunidade local ameaçada.”
Agredidos por obras ditas estratégicas, mas que delas nada têm, vemos sucessivas tentativas de explorar os recursos da Terra, como se ela fosse um espaço de escravatura.
“Por tudo isso tornei-me num cidadão, que defende a resistência civil contra as agressões injustificadas. A ecologia é a salvaguarda do planeta. Os nossos nãos de hoje são os sins de amanhã. Quero apenas tornar possível o futuro o mais longamente possível procurando abrandar a destruição da Terra. Pondo grãos de areia na engrenagem.”
Para De Luca as décadas mais recentes têm transformado os cidadãos em clientes, cujo valor resulta do seu poder de compra. Direitos básicos como a Justiça, a Saúde e a Educação tornaram-se em serviços. O Estado deixou de ser o governo de uma comunidade, mas uma empresa que vende tais serviços e deve apresentar lucros.
Só sendo rico se pode beneficiar de uma boa educação, saúde ou justiça. O primeiro-ministro Renzi nada pôde mudar, porque plana acima da espuma dessa empresa de demolição da coletividade, pedra por pedra, fibra por fibra. “ O cliente é fruto do cada um por si. Só na luta nos podemos tornar cidadãos.”
Vivemos num tempo em que o proletariado desapareceu. Os operários deixaram de ter uma voz, uma força, uma relevância política. Hoje podemos lutar pela liberdade e pela igualdade, mas a fraternidade já rareia. E não deve ser confundida com os direitos por que se luta. Pelo contrário ela é a condição sine qua non para os obter. Por isso mesmo constitui um dos valores republicanos cuja redenção mais importa conseguir.
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