Não sei quantas vezes estive no Japão, mas de todas elas guardei a recordação de me sentir um pouco como o Bill Murray no filme da Sofia Coppola, sempre rodeado das maiores simpatias, mas a dizer-me que aqueles tipos não eram propriamente humanos, mas autênticos aliens. E, no entanto, uma vez um desconhecido pegou-me em duas das malas de que me fazia acompanhar e levou-as até à praça de táxis onde me dirigia para seguir até ao aeroporto, e sem que lhe tivesse sequer pensado em pedir ajuda.
Outra vez, em Miike, sabendo que o meu grupo provinha de Portugal, um outro desconhecido, que viriamos a saber diretor do museu local, preparou uma memorável receção em honra dos descendentes dos que, há quinhentos anos, tinham ali desembarcado e trazido consigo as novidades da civilização ocidental. Ainda hoje tenho um baralho de cartas japonês, que foi a oferta com que me prendaram, herdeiro de outros ali dados a descobrir pelos nossos navegadores.
Mas a situação mais singular em terras nipónicas foi numa reunião em que os nossos interlocutores não falavam senão japonês, apesar de estarem na ilha de Okinawa, onde subsiste uma impopular base norte-americana: tivemos de tratar dos assuntos, que ali nos tinham levado, com o recurso exclusivo a uma mímica que, vista de fora, seria no mínimo caricata.
Quando leio autores nipónicos, quase sempre encontro a mesma sensação de algo para além do que costuma ser a nossa normalidade. Outrora em Mishima era o gosto de uns miúdos sádicos em torturarem e matarem gatos vadios. Mais recentemente tem sido Murakami e o seu imaginário feito de sonhos em que as personagens parecem ganhar existência em vidas paralelas invariavelmente atemorizantes.
Curiosamente esta predisposição para dar relevância aos sonhos também surge neste livro de Banana Yashimoto, apesar de ela nos apresentar uma relação amorosa quase convencional entre Manaka e Hiroshi, dois jovens que cresceram porta com porta, tornando-se primeiro amigos, e depois marido e mulher, quando contavam dezoito anos.
Ambos dados ao silêncio e à reflexão, passam dias quase sempre iguais, ela ocupada no jardim da casa familiar acompanhada da cadela Olívia, que acaba por morrer de velhice e ele a superar sucessivas crises da angústia, capazes de redundarem em inexplicáveis choros.
Algo muda quando o avô, com quem Hiroshi sempre vivera, também chega ao desenlace natural. Ajudando a esvaziar-lhe a casa, para dela fazerem o seu novo lar, Manaka vê um estranho e sinistro altar, que Hiroshi tem dificuldade em destruir, fazendo disso um grande desafio pessoal.
É para desanuviarem de uma experiência bem mais complicada do que se adivinharia, que ambos vão passar a lua-de-mel à Austrália, onde vive a verdadeira mãe dela, entretanto comprometida num novo projeto familiar. É aí que Hiroshi quebra o silêncio e conta a razão do seu ensimesmamento: abandonado muito novo pelos pais, sabia-os ligados a seitas inquietantes. Nomeadamente o pai era uma espécie de sacerdote copulador numa seita em que os bebés eram deixados morrer á fome, logo após a nascença e, depois, objeto de repasto canibalesco pelos demais sequazes. Porque essa missão passaria de pai para filho, Hiroshi sempre vivera aterrorizado com a ideia de, mais tarde ou mais cedo, vir a ser convocado para assumir o seu predestinado papel, algo de que parece finalmente libertar-se.
E eis aqui a razão da minha opinião sobre os nipónicos: que mentes doentias conseguem imaginar possibilidades de horror tão hediondas? Faz lembrar um episódio que, há muito evoco sobre uma espectadora depois do 25 de abril, a insurgir-se na plateia do cinema Satélite contra um dos filmes mais grotescos de Arrabal: utilizando o mesmo argumento dela, eu diria, que põe-se um honesto leitor a entreter-se com um livro e sai-lhe um epílogo tão esdrúxulo na rifa!
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