Como acontece com a comida para os grandes apreciadores da gastronomia, há livros para serem avaliados com justificadas delongas tal o prazer que poucas páginas de cada vez proporcionam. E é o que está a suceder com «Comédie Française», o livro autobiográfico de Fabrice Luchini, um dos atores franceses que mais facilmente me leva ao cinema sem cuidar qual o realizador, que o dirige, tão gratas têm sido as experiências de o ver a desempenhar sucessivos papéis.
Na página 89 ele aborda a forma de, em palco, interpretar as peças do reportório clássico do século XVII: “o que é um alexandrino? Como dizê-lo? Como se respira? Como o conseguir restitui-lo sem nos deixarmos levar pela sua forma, que arriscaríamos a torná-lo sem sentido? Um homem que interprete o alexandrino deve dar a impressão de que ele é fala normal e, no entanto, ele não o é, porque o seu ritmo deve ser respeitado. Mas se for recitado, só pode suscitar tédio.”
O fascínio das interpretações de Luchini, quer diga Molière ou Prévert, é dar-nos a sensação de que a língua francesa é mais bela do que realmente consegue ser. Se fosse ator italiano, teria a tarefa facilitada, porque a musicalidade da frase decorreria da mera pronunciação das palavras. Mas em francês, convenhamos que o desafio consegue ser bem mais difícil, mas bem sucedido. Aliás algo muito interessante de ver o ator Luchini fazer, seria pegar naquela que é para mim uma das línguas foneticamente menos agradáveis, que conheço, o japonês, e ver se na declamação de um haiku conseguiria a mesma façanha de nos envolver com um ritmo mais sentido do que entendido. Ele di-lo aliás, mais adiante, quando é taxativo: “Não tenho nada para dizer às pessoas. Elas nada têm de compreender, mas de sentir. E, para que elas sintam, é necessário que o ator também sinta.”
Mas o jovem com poucos estudos, que se tornara cabeleireiro para ganhar os primeiros ordenados e se deixou, momentaneamente, seduzir pela extrema-esquerda até se envolver no prazer da representação, chegou cedo a Molière e dele ficou definitivamente cativo em irresistível sortilégio logo que descobriu os diálogos entre Alceste e Philinte no «Misantropo». Que refletem uma moral: deverá ser-se sincero e dizer aos outros, que os achamos enfadonhos, medíocres ou trapaceiros, como defende Alceste, ou a resiliência social mandaria imitar Philinte na sua hipocrisia? Os resultados são óbvios: este último é bem considerado na sociedade, enquanto o interlocutor é o misantropo, tido como irascível e intratável.
É curioso como certas culturas possuem na sua literatura algumas da suas grandes obras e as prezam como imprescindíveis guias de pensamento e de códigos de conduta. Os jovens franceses convivem, desde muito cedo, com as grandes obras de Molière e seus contemporâneos, mais ou menos movidos pela mesma orientação de fazerem dos seus textos um método de formatação das mentes do seu tempo e dos que vieram a seguir. E Borges reverenciava o «Martin Hierro», coplas de poemas que vi igualmente idolatrados por operários argentinos, apesar de tenderem a criar estados de alma contrários aos valores progressistas que, politicamente, os motivavam.
Em Portugal isso não sucedeu. O Padre António Vieira, que poderia ter conhecido o mesmo impacto era o primeiro a reconhecer a incapacidade de ser ouvido pelos seus contemporâneos, ao ponto de se imaginar a fazer sermões para os peixes.
Os conteúdos pedagógicos, que foram dados a gerações inteiras de portugueses, que viveram antes do 25 de abril, tinham apenas como origem os que lhes cultivassem os preconceitos oriundos do que de mais retrógrado provinha da raiz judaico-cristã (ai os poemas de Afonso Lopes Vieira, que tínhamos de aguentar!). Quanto ao que veio depois, ainda não houve tempo de sedimenta-lo numa base cultural, que se revele duradouramente estruturante. Como Molière ainda significa para os franceses ou José Hernandez para os argentinos.
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