“Há quem diga que todas as noites são de sonhos. Mas há também quem garanta que nem todas, só as de verão. No fundo, isto não tem muita importância. O que interessa mesmo não é a noite em si, são os sonhos. Sonhos que o homem sonha sempre, em todos os lugares, em todas as épocas do ano, dormindo ou acordado.”
No ciclo sobre as obras de William Shakespeare, que o Cineclube da Associação Gandaia anda a programar para as noites das 5as. feiras no Cinema Impala da Costa da Caparica, exibe-se amanhã às 21 h o filme «Sonho de uma Noite de Verão», comédia representada pela primeira vez entre 1595 e 1596, provavelmente escrita por ocasião de um casamento aristocrático, como é explicado pelo seu aspeto de epitalâmio.
Na Grécia Antiga estas peças líricas consistiam num elogio público e solene, dirigido ao conjugue de maior condição social, sob a forma de invocação aos deuses para que concedessem aos noivos a felicidade eterna.
«Sonho de uma Noite de Verão» acontece inteiramente no intervalo entre o anúncio do casamento de Teseu, duque de Atenas, com Hyppolita, rainha das Amazonas, e o efetivo início das festividades, tendo a curiosidade de incluir a representação de uma peça de teatro por artesãos em honra do seu duque (5º ato).
É uma comédia de fantasia desbragada, a misturar diversas intrigas habilmente misturadas, ora cómicas, ora cingidas ao seu lado fantástico. Se é tão conhecida e referenciada é por constituir um dos melhores exemplos da extraordinária imaginação do autor.
Uma comédia de imensa fantasia
Na corte de Atenas os jovens príncipes Hermia e Lisandro tentam comover o duque Egeu, pai dela, que lhe quer impor o casamento com Demetrius, por seu lado, amado por Helena.
A lei imposta por Teseu é inflexível: eles devem obedecer à vontade paterna, decisão que o par de apaixonados decide desrespeitar fugindo para a floresta logo que a noite chega, sendo perseguidos por Demetrius e Helena.
A floresta é o espaço simbólico do proibido e do caos mas, ao mesmo tempo, o reino onde habitam fadas e génios, que reproduzem ali a estrutura social da corte. Igualmente ali se encontram os artesãos de um grupo de teatro amador contratados para interpretarem uma peça de teatro na festa de casamento do duque e de Hyppolita.
No início do segundo ato, Oberon e Titania, respetivamente rei e rainha do reino das fadas, disputam a posse de um pequeno pajem. Oberon decide vingar-se de Titania fazendo-lhe uma partida: ordena ao seu génio Puck que verta um filtro do amor nos olhos da rainha para que se apaixone pela primeira criatura por ela vista ao despertar. O «sortudo» será o tecelão Bottom, do grupo teatral, a quem Puck impusera uma cabeça de burro.
Oberon decide ajudar os jovens atenienses encarregando Puck de administrar o mesmo filtro nos olhos de Demetrius para que ele se enamore de Helena. Só que engana-se na identidade dos príncipes e toma Lisandro por aquele, criando uma tal confusão, que Helena não tardará a ver-se ardorosamente cortejada por ambos para inveja da preterida Hermia.
No final do terceiro ato a confusão está no seu clímax: a rainha das fadas apaixonada por um monstro e os dois príncipes prontos para se matarem na disputa por Helena.
Oberon atenta na situação e intervém para resolvê-la fazendo com que os atenienses adormeçam e voltem a despertar com a pessoa certa à sua frente. Acorda, igualmente, Titania para troçar dos efeitos nela operados pela magia.
Quem acorda os quatro foragidos é Teseu e Hypollita, que tinham decidido partilhar uma caçada na floresta. Ainda mal acordados, aqueles julgam estar ainda a sonhar, mas obtêm a clemência do duque para os seus amores contrariados. Bottom, também desperta devolvido à forma humana e reencontrando os amigos.
O quinto ato é consagrado à representação da peça dos artesãos em honra do triplo casamento em breve abençoado pelas fadas, que nos surgem quando todos os noivos e noivas já saíram de cena.
Uma reflexão sobre o teatro
Esta é uma peça inclassificável onde o maravilhoso e o cómico se disputam. Constitui uma meditação sobre os poderes do sonho e da imaginação face às leis arbitrárias e por isso mesmo uma teatralização da intuição do inconsciente.
A floresta é o espaço onde os jovens escapam aos rigores das leis familiares e civis mas igualmente o das paixões mais descontroladas.
As experiências radicais de uma rainha apaixonada por alguém com cabeça de burro ou triângulos, quiçá retângulos amorosos, normalizam-se com o regresso à vida real quando todos despertam e já exorcizaram as tentações havidas durante os sonhos.
Devolvidos à corte ateniense os jovens reajustaram-se às regras da vida social só conservando uma longínqua reminiscência dos acontecimentos noturnos.
Estamos, sobretudo, perante uma interessante reflexão sobre o teatro através da peça dos simpáticos artesãos, que criam uma “peça dentro doutra peça”, através da qual retomam, na forma burlesca, o tema do amor contrariado.
Shakespeare troça assim da conceção ingénua da arte teatral, por ele entendida como excessivamente realista. Por exemplo os artesãos empenham-se em destruir qualquer ilusão dramática para evitar que o público se aterrorize com o falso leão, que não é senão um ator vestido com um fato capaz de sugestioná-lo na pele de um animal.
Este cena burlesca, que é uma das mais divertidas em toda a obra do autor, reforça o contraste entre a ilusão e a realidade, que permite suscitar a empatia do público com tudo quanto antes se passara.
Shakespeare está aqui no cume da sua arte: tudo é representável, mesmo o mágico e o sobrenatural, através do desafio imposto à imaginação do espectador. Porque assim o declara Teseu no seu conhecido discurso do quinto ato, os poderes da imaginação, do poeta, do amante ou do louco, tornam possível passar da terra para o céu e vice-versa., conseguindo-se pela sua mera evocação dar existência ao que está ausente: “Tal como a imaginação dá corpo ao desconhecido, a pluma de um poeta dá-lhes uma figura e confere a essas bolhas de ar um lugar no espaço e um nome».
Sem comentários:
Enviar um comentário