O cinema português atravessa um bom momento apesar da escassez de apoios para que as produções tenham mais meios, ou os novos realizadores possam avançar para os seus projetos. Mas o advento do digital tornou possível orçamentos mais baixos, equipas mais pequenas e pós-produções mais expeditas.
Um dos títulos que mais expetativa suscita neste ano de 2017 é o «São Jorge» de Marco Martins, que o veio rodar na margem sul entre os bairros da Bela Vista e o do Jamaica.
Interessado pelos efeitos da crise económica e social dos últimos anos junto dos que dela foram as vítimas mais desprotegidas, o realizador decidiu contar a história de um boxeur, asfixiado pelas dívidas, que põe de lado as suas objeções morais e trata de assediar outros como ele contra quem procede às cobranças difíceis.
O dilema entre garantir a sobrevivência da mulher e do filho, ou corresponder ao que os seus princípios aconselhariam, é o que se coloca ao personagem interpretado por Nuno Lopes, que por ele foi galardoado com um prémio de interpretação masculina no Festival de Berlim.
Os trabalhos de Marco Martins não nos interessam apenas pelo que vamos vendo nos seus filme: disposto a abordar a realidade, contactando-a diretamente, foi da sua autoria o projeto que envolveu operários dos Estaleiros de Viana do Castelo em 2012, desafiados a interpretarem «Á Espera de Godot», e já outro se anuncia, igualmente, interessante, que o levará este ano a Inglaterra, juntamente com o mesmo Nuno Lopes e Beatriz Batarda, para mostrar como emigrantes portugueses, que trabalham numa fábrica de transformação de carne, vão evoluindo nos seus valores e costumes, sobretudo numa altura em que o Brexit os ameaça seriamente, ou não vivam eles numa pequena cidade onde a votação para sair da União Europeia foi esmagadora.
Martins põe-nos a refletir se, esgotados os métodos habituais do cinema e do teatro mais militantes, essa ambição de ir ao encontro dos mais desfavorecidos, ouvindo-os, convidando-os a refletirem sobre a sua condição e estimulá-los a fazerem de atores das suas bem conhecidas realidades, não será a mais eficaz e transformadora.
Em contraponto, e por curiosidade, voltemos quarenta anos para trás e evoquemos um filme de Yves Boisset intitulado «O Juíz Fayard», que permitiu descobrir para o cinema um dos seus rostos mais efémeros e atormentados (Patrick Dewaere) e contou ainda com outro, quase sempre envolvido em segundos papéis, mas bastante personalizados: François Léotard.
Na época víamos esses filmes como exemplos do que um cinema comprometido poderia conciliar entre a denúncia e o agrado do grande público.
Dewaere era esse juiz de uma pequena cidade de província que, ajudado por um inspetor da polícia, irá descobrir que o grande banditismo está associado a políticos aparentemente insuspeitáveis, mas com interesses diretos nos lucros colhidos por essa forma de criminalidade.
À distância a associação simplista políticos = corrupção assusta pelo que contém de mentalidade fascizante, como se vem assistindo em Portugal com os esforços, felizmente baldados!, de Paulo Morais ser entendido como alguém de irrepreensível seriedade.
Se na época o filme de Boisset era datado, agora é-o muito mais, com personagens sem espessura e com um maniqueísmo primário.
Às vezes a realidade mais insuportável pode ter o Amor como catarse, como Emir Kusturica mostra em «A Via Láctea» agora em exibição nos cinemas nacionais e que o tem a contracenar com Monica Bellucci.
Porque nunca poderá aceitar a mitologia mentirosa, que os media internacionais criaram em torno da guerra da Bósnia, ele usa-a como contexto para a paixão de um homem incumbido de conseguir leite para os soldados da frente de combate tomado de paixão por uma italiana. Como se o realizador nos quisesse dizer que, na impossibilidade de desmascarar as mentiras e manipulações, que fizeram dos sérvios os maus da fita de um conflito onde os verdadeiros autores têm de ser encontrados fora dos próprios Balcãs - ele não os nomeia, mas nós sabemos que foram o Pentágono, a NATO, e muito particularmente o Reichtag e o Vaticano - o melhor é distrairmo-nos com os encantos bem mais gratificantes dos afetos.
Como de costume em Kusturica temos a anarquia delirante e efusiva.
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