quinta-feira, janeiro 19, 2017

(DIM) «Passagem para a Índia», o derradeiro filme de David Lean

Nunca me sentira tentado a ver a última obra de David Lean - «A Passagem para a Índia» - preso de arreigado preconceito contra o realizador de grandes pastelões históricos - «A Ponte do Rio Kwai», «Lawrence da Arábia», «A Filha de Ryan» -muito do agrado das piedosas senhoras dos anos 60 e inícios dos anos 70, que iam suspirar com o romantismo senil das histórias em causa e iam depois beberricar chazinhos nas pastelarias elegantes da capital.
Mas, sentindo-me num astral rico em capacidades de complacência, arrisquei a experiência de apreciar o derradeiro título da filmografia do realizador,  mesmo confirmando a justeza de tudo quanto dele pensava. Procurava entender como o romance de E.M. Forster ajustava-se ao propósito de Lean dele se servir para seu testamento cinematográfico.
A intriga do filme leva-nos para os anos vinte do séculopassado, quando Adela e a futura sogra embarcam para a Índia, onde esperam reencontrar Ronny, aí colocado na função de juiz numa região recuada em relação às grandes metrópoles da que era tida como a mais estimada joia da coroa britânica.
Depressa se compreende a atitude diferenciadora das recém-chegadas em relação aos que lhes servem de anfitriões: em vez da esperada convivência pacífica entre colonos e colonizados, dão com uma sociedade segregacionista onde uns são modernos senhores feudais e os outros os seus relutantes escravos. A única exceção é um professor Fielding, que as põe em contacto com um médico muçulmano, o dr. Aziz, e um velho brâmane, Godbole.
Lean utiliza os grandes meios colocados à sua disposição para dar da Índia um retrato exótico, conduzindo-nos até a cidade de Chandrapore, às grutas do Marabar ou aos contrafortes dos Himalaias. Embora em 1984 as viagens para esse lado do mundo já se tivessem tornado numa moda relativamente acessível aos mais abonados dos ocidentais, existe a intenção de convidar o espectador para descobrir paisagens desconhecidas nos gigantescos ecrãs das grandes salas de cinema, então em acelerada extinção.
No papel de Adela, surge Judy Davis, que é irrepreensível na representação da jovem inglesa frágil, mas resoluta, curiosa, mas insensata na exposição dos seus sentimentos. É o fascínio por esse universo até então desconhecido, que irá criar as condições para o drama polarizado em torno das suas equívocas relações com o médico muçulmano de quem aceitara o convite para uma excursão turística.
Lean usa e abusa da habitual sintonia entre as manifestações da natureza e os estados de alma dos personagens, com o sol escaldante a contribuir para a alteração das perceções dos que lhe sofrem os efeitos. E das vicissitudes por que passa, Adela escandaliza a sociedade inglesa, que a acolhera, ao negar-se ao casamento com o prometido noivo. Porque não se encantando com os homens locais, ela encontra neles a motivação para desafiar as leis vigentes e reivindicar a pertença a um mundo com outra ordem de valores.
Se há cena ilustrativa do que depois se virá a passar, é a do passeio que leva a solitária Adela até um campo abandonado onde descobre vestígios arqueológicos de construções há muito tombadas, mas onde são percetíveis as esculturas com cenas dignas do Kamasutra. A sensualidade dessas sugestões perturbam-na, mas logo se vê ameaçada por um grupo de macacos, donos daquele território, que dele a afugentam.
Se a natureza lhe prodigalizava insinuações eróticas, o namorado surge-lhe entediante, respeitador do poder e dos seus valores vitorianos, que ela irá rejeitar.
Ao contrário do que a crítica de então tanto se excedeu em encómios toda a sequência da visita às grutas e da suposta agressão sexual de Aziz, que irá fundamentar as subsequentes cenas de tribunal, é inverosímil na rapidez com que Lean faz Adela passar da curiosidade para o pânico em função do eco propiciado pelo local. Da mesma forma que o julgamento de Aziz e a sua promoção a herói anticolonial é mal desenvolvido, quase caricato por culpa do ator, que serve tal personagem. Ou, sobretudo, de quem o dirigiu.
Não sendo descartável como entretenimento para quem não encontre ocupação mais interessante, «Passagem para a Índia» interessa agora como exemplo de um tipo de cinema como já não se faz, porque a arte em si passou a contar com públicos muito diversos dos que existiam, quando foi produzido. 

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