Está disponível em edição portuguesa o romance «Cicatrizes», que o argentino Juan Jose Saer publicou originalmente em 1969, quando a ditadura dominava a sua Argentina natal e ele acabara de se instalar em Paris, onde viveria quase sempre até morrer em 2005. Há quem o considere o melhor escritor argentino desde Borges, mas convenhamos que o país das pampas tem tão excelentes prosadores, que é excessiva essa caracterização demasiado enfática.
O romance tem como eixo central o crime conjugal que o operário metalúrgico Luis Flore comete contra a legítima num 1º de maio em que tinham passado o dia no campo. Mas o que lemos são quatro histórias aparentemente sem nexo entre si, só tardiamente compreendidas como interrelacionadas com a última, aquela precisamente dedicada ao diferendo fatal em casa dos Flore.
Antes de aí chegarmos conhecemos Angel Leto, um adolescente desejoso de se tornar jornalista e com uma relação tensa com a mãe, Sergio Escalante, um advogado quase sem trabalho e cujos rendimentos se esvaem no vício do jogo, e ainda Lopez Garay, o juiz encarregado de julgar o caso, mas está bem mais interessado no seu hobby de tradutor diletante.
Esses três personagens interessar-se-ão profissionalmente pelo caso do operário, que matara a mulher e se suicidara a seguir. Por isso ajudam a converter a prosa fragmentária numa visão mais geral, que era a da Argentina desses anos difíceis.
Recordemos que La Fontaine defendia como forma de chegar ao coração de alguém, arranjar forma de lhe contar uma boa estória. É o caso destas Cicatrizes, que evitam o cumprimento das regras da literatura policial, mas consegue cuidar de personagens que optando pelos sucessivos caminhos, acabarão por os transformar em sombras de si mesmos.
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