Retomo a leitura de «Boussole», o romance de Mathias Enard cujo estilo - muito denso e com milhentas informações dentro de cada longo parágrafo! - exige leitura muito concentrada, raramente possível tendo em conta os estímulos sonoros normalmente existentes à nossa volta. Por isso avanço lentamente, poucas páginas em cada dia, sob pena de não o apreciar com o mesmo sentido com que os gourmets dedicam aos seus pratos favoritos.
No texto anterior deixáramos o narrador, o musicólogo Franz Ritter, a contas com uma longa noite de insónia na qual evoca o frustrado romance amoroso com a arqueóloga Sarah a quem acompanhara num périplo, que incluíra a Turquia, a Síria e o Irão. Agora dela distante nos muitos quilómetros, que separam Viena da malaia região de Sarawak, aonde nova prospeção de vestígios do passado a haviam levado, Franz recorda-a com a nostalgia de quem olha para paraísos definitivamente perdidos.
Em Palmira tinham ficado no Hotel Zenobia de esplêndida localização: “para o lado da cidade antiga, tínhamos diante de nós, apenas a algumas dezenas de metros, o templo de Baal, e se tivéssemos a sorte de conseguirmos quartos do lado da fachada, quase nos diríamos a dormir no meio das ruínas, com a cabeça nas estrelas e os sonhos antigos, embalados pelas conversas de Baal-Shamin, deus do sol e do orvalho, com Ishtar, a deusa do leão.” (pág. 127)
Angustiado pela doença recém-declarada (uma depressão muito acentuada), Franz não se levanta da cama, apesar da sede. Sabe que ouvir música lhe poderia dar algum alento, mas preocupa-o quanto tempo de vida lhe resta. No íntimo sabe, porém, ser outra a pergunta que o obceca: como se deixara converter no solitário incapaz de dormir na noite vienense e por isso atento ao batimento do coração e às tremuras nos membros. O instante decisivo acontecera nessa estadia em Palmira, quando ele e Sarah quase tinham aproximado os lábios para se beijarem e, no último momento, ele virara cobardemente a cara e desviara-se. Naquele beijo, que não dera, definira-se todo o seu futuro; o destino curvara-se e tomara outra direção.
“Pode-se dizer que a minha vida espiritual constituiu o mesmo desastre que a sentimental. Vejo-me hoje tão desamparado como outrora, sem a consolação da fé. Manifestamente não faço parte dos eleitos. Talvez me tenha falhado a capacidade para ser um asceta ou a imaginação criativa para me tornar num místico. A música acabou por constituir a paixão que me resta.” (pág. 156)
Sem comentários:
Enviar um comentário